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Reformar a Reforma? Agora são outros 500

Reformar a Reforma? Agora são outros 500

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Texto de Capa Edição 02/2017

“Vocês usarão o entulho do passado para construir de novo, reconstruirão sobre os antigos alicerces da sua vida. Vocês serão conhecidos como aqueles que reparam qualquer coisa, restauram ruínas antigas, reconstroem e renovam, tornam a comunidade habitável outra vez.” (Isaías 58.12 – Bíblia A Mensagem)

Reforma! Reforma?

Pensar os 500 anos da Reforma significa, antes de tudo, rever a ideia de uma única Reforma e, quem sabe, rever o próprio conceito de Reforma como “instituição”. Os historiadores nos fizeram um péssimo favor ao tratar todos os acontecimentos do Século XVI como um acontecimento único, unívoco e geograficamente localizado. Seria mais correto falarmos de Reformas, assim, no plural. O movimento de Lutero é diferente da ação de Calvino, que difere de Müntzer, que destoa dos movimentos radicais. Isso para falar apenas de quatro delas.

Foto Débora Ludwig
Foto: Débora Ludwig

Por que isto é importante? Porque mesmo tendo como “data fundamental” o fato luterano do debate sobre as 95 teses, os desdobramentos de todos esses movimentos ainda fazem parte, aqui e ali, de ideias e ideais a serem pensados e repensados. Vistos e revistos. Remexidos. Reformados.

A releitura das Reformas na Europa é fundamental para que o chamado, “Espírito da Reforma”, não se perca: ecclesia reformata et semper reformanda est.

Quando estacionamos no século XVI, ofendemos a história desses movimentos e trazemos sobre nós a pecha de calar essas vozes, até então progressistas e revolucionárias, tornando-as anacrônicas, normativas e, sobretudo, incoerentes.

O contexto

Os movimentos chamados reformadores, nascem em contextos específicos, e isso é importante para entendermos sua rápida expansão e aceitação por parte de muitos.

Desde toda a história da Igreja, aqui e ali surgiram movimentos que denunciavam desvios e descaminhos por parte do clero e da igreja como instituição de Cristo na Terra. As denúncias quase sempre eram baseadas em temas recorrentes: corrupção do clero, exploração dos mais pobres e acúmulo de riquezas por parte da Santa Madre, a Igreja. Os debates teológicos também faziam parte dessa dinâmica.

Eram tempos difíceis e de dor. Eustache Deschamps, poeta francês que viveu entre os Séculos XIV e XV, escreveu acerca de sua realidade:

“Tempo de dor e tentação
Época de pranto, inveja e tormento,
Tempo de langor e danação,
Época que se aproxima do fim,
Tempo cheio de horror, que faz tudo errado,
Época de mentiras, cheia de orgulho e inveja,
Tempo sem honra e sem julgamento verdadeiro,
Época de tristeza, que abrevia a vida.” ¹

Outro poeta francês, Jean Meschinot, traz em sua poesia o mesmo lamento de Deschamps, trazendo ainda um relato mais forte e cruel de seu tempo:

“Ó vida miserável e tão infeliz!…
Temos guerra, morte e fome;
Calor e frio nos minam noite e dia:
Pulgas, sarnas e outros vermes
Não param de nos atacar. Em suma, a miséria domina
Nosso corpo insignificante, cuja vida é muito curta.” ²

Estamos falando, então, de um período em que grassam a fome coletiva, a peste e uma crise agrária sem precedentes. Exploração dos mais pobres (que parece não ser novidade na história) por parte dos poderosos, e estes aliados à Igreja. Isso quando não era a própria Igreja a detentora do poder e das terras, que eram trocadas por indulgências.

Durante esses séculos que precederam as chamadas Reformas, nomes como Francisco de Assis, Pedro Valdo, John Wycliffe, Jan Hus, são fundamentais para que se entenda uma constante tentativa de chamar a atenção da instituição religiosa rumo a caminhos mais simples e próximos ao povo.

Uma nova Reforma?

Não! Aliás, ao estudar os chamados reformadores e até mesmo os pré-reformadores, podemos perceber que não cabia sobre eles a ideia de uma liderança institucional, engessada, datada e encerrada. Quando surgem aqui e ali, apelos por uma “nova Reforma”, parece-nos que a ideologia por trás desses clamores ainda não compreende efetivamente aquilo que é reivindicado.

Nem mesmo Lutero propõe uma “Reforma”. O termo alemão utilizado pelo monge agostiniano, conhecido como por suas 95 teses e pelos desafios propostos à Igreja, seria melhor traduzido como “melhorias”. Não havia uma intenção de “reforma”, muito menos da criação de um movimento separatista e dissidente. O cisma foi inevitável porque a própria Igreja não admitiu as críticas e condenou o monge à excomunhão.

Uma “nova Reforma” tende a tornar-se tão enfadonha e perigosa daqui a algumas décadas, quanto é hoje, por exemplo, o despertar dos neocalvinistas ‒ que nada mais são do que meninos tentando reacender uma vela que “já deu o que tinha que dar”. Como num bolo de aniversário que, ao assoprar a vela, ela torna-se obsoleta, assim deve-se entender o assoprar das velas do Século XVI. No outro ano, já se faz necessária uma nova vela, para uma pessoa com uma outra idade, e já diferente do que foi no passado.

Além disso, a reafirmação anacrônica de conceitos das Reformas, que respondiam ao tempo em que foram defendidos, traz em si uma presunção de verdades absolutas sobre um movimento que, ao contrário disso, deveria reafirmar a relatividade de suas proposições, exatamente por perceber a efemeridade das ideias e das doutrinas como fruto de uma busca incessante de que a fé faça sentido em seus tempo e espaço.

Discernindo os tempos

O legado das Reformas, ou dos movimentos de melhoria propostos em toda a história da Igreja, deveria nos proporcionar, primordialmente, uma leitura da igreja e de seu tempo, de forma autocrítica e realista, para então propor-se algo que seja coerente com o “Espírito da Reforma”.

É necessária uma interpretação de mundo, que leve em conta contextos políticos de opressão, projetos ambiciosos de poder às custas de sofrimento humano, e projetos religiosos que esmagam o diferente, seja qual for essa diferença, fruto apodrecido e maligno de ditaduras religiosas fundamentalistas.

Perceber um mundo que, só nos últimos 110 anos enfrentou duas Grandes Guerras e a Guerra Fria, que respira hoje a incerteza por conta de governos extremados e extremistas, e que se queda sob um império que se arroga salvador do mundo (mas que explora muitos povos e não hesita em fazer “guerra em nome da paz”), é, sim, tarefa de quem quer se propor a continuar a “reformar” a Igreja.

Entender os contextos da migração por conta das inúmeras guerras e catástrofes, a realidade dos campos de refugiados, ou a fuga para outros países em busca de abrigo e uma chance de vida, é fundamental para uma proposta de Igreja acolhedora e profética.

Abrir-se ao diferente e abrir mão de uma imposição de ideias e ideais religiosos, também é uma tarefa da teologia que leva a sério o legado das Reformas. Principalmente no contexto brasileiro, onde Igreja e Estado misturam-se de forma venenosa e perversa, geralmente lutando contra os Direitos Humanos e trazendo à tona figuras bizarras como seus representantes, tanto políticos como religiosos.

Ainda no contexto brasileiro, a existência, por exemplo, de uma “Bancada Evangélica” (e aqui as aspas são necessárias e propositais), é uma afronta aos movimentos reformados que lutaram pela separação entre Igreja e Estado e, principalmente, uma ofensa ao Cristo que dizem seguir e defender. O problema se agrava quando a ação dessa “Bancada” segue rumo à castração dos direitos do povo (vide as reformas trabalhista e da previdência – onde a maioria da “bancada evangélica” votou a favor dos retrocessos) ou contra os Direitos Humanos, principalmente aqueles que dizem respeito, por exemplo, ao público LGBT, eleito por esses “representantes de deus” como grandes inimigos a serem vencidos.

Um outro fator, tão importante quanto esse contexto político e social, é o próprio contexto religioso brasileiro, onde o neopentecostalismo surge como a grande referência evangélica, catapultando seus líderes a patamares políticos e midiáticos nunca antes imaginados, e que fazem parte de um grande projeto político iniciado nos anos 70/80 com a intenção de transformar o Brasil numa pátria evangélica.

Leia-se “pátria evangélica” não como um projeto de Reino de Deus, onde justiça e misericórdia prevalecem, onde os direitos sejam de todos e todos tenham acesso ao que o Estado ordena e distribui ‒ mas como um poderio “teocrático”, ditatorial e exclusivista, onde a fé é imposta de cima para baixo, desrespeitando a laicidade do Estado e submetendo o mesmo aos seus desvarios e desmandos.

Então… o que fazer?

É necessário, primeiramente, um olhar histórico e crítico. É possível aprender com a história, que foram exatamente os protestantes, aliados à maçonaria, que lutaram pelo Estado Laico, já que até 1981 o Brasil teve uma religião oficial. Essa mistura oficial entre Igreja e Estado sempre foi prejudicial ao diferente. É de se estranhar, então, que justamente aqueles que lutaram pela implantação do Estado Laico sejam, hoje, os principais opositores dele.

Em segundo lugar, entender as reformas não como instituições a serem copiadas e defendidas, mas como movimentos que são frutos de seu tempo e contexto. Essa percepção nos livra de tornarmo-nos apenas idólatras de um sistema que já não responde à nossa realidade e que, caso seja avidamente defendido e imposto, resultará, indubitavelmente, em aberrações e opressões.

Por último, ‒ e que fique bem claro que são apenas apontamentos, sugestões e possibilidades, em vez de soluções pragmáticas e herméticas ‒ que o resultado deste movimento seja dialogal, ecumênico, inter-religioso e, principalmente, encharcado de amor, o que deveria ser o princípio fundamental de qualquer movimento que se arrogue cristão.

É extremamente necessário que esse diálogo passe pela realidade das minorias, que compreendam-se as verdades do genocídio da juventude negra, do machismo estrutural de nossa sociedade, do racismo aviltante e presente no dia-a-dia, da violência contra a comunidade LGBT (e aqui violência deve ser lida não só como física), do acolhimento aos refugiados e da luta incessante contra as injustiças, principalmente as alardeadas e defendidas “em nome de deus”.


Referências

HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2012. Pág.49
HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2012. Pág.50