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Possibilidades para um ativismo católico e feminista a partir de Católicas pelo Direito de Decidir

Possibilidades para um ativismo católico e feminista a partir de Católicas pelo Direito de Decidir

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Pensar em feminismos é pensar nos diversos impactos que estas epistemologias e movimentos sociais provocaram a partir de categorias como “gênero”, “patriarcado”, “particularismo/universalismo”, “público/privado”, entre outros. Não foi uma mudança somente nas ciências, mas, principalmente nas instituições políticas, sociais, educacionais e também religiosas, em que o masculino é questionado por sua construção como hierarquicamente superior ao feminino: não queremos somente igualdade, mas novas relações baseadas em liberdade, justiça e solidariedade.

Nos interessa particularmente neste texto a presença do feminismo nas religiões cristãs, especialmente o catolicismo romano. De antemão, sabemos que esta presença não é institucional, mas se manifesta, em maior ou menor medida, nas práticas das mulheres que compreendem, choram e se rebelam frente as opressões sofridas interna e externamente nas igrejas, trazendo menos teoria e mais práxis dentro da acolhida e solidariedade, que se manifesta com todas que carregam o peso do acúmulo e invisibilização do trabalho doméstico e de cuidados, o aumento da pobreza em seus lares, a morte prematura de seus filhos assassinados pelo Estado e a permanência da violência patriarcal, que as silencia em diversos lugares em que estão situadas, como em suas casas, trabalhos e também nas igrejas.

Mas, é possível falar em feminismo dentro de comunidades religiosas? Falando a partir da tradição religiosa que marcou o meu corpo e segue na minha existência, o catolicismo romano: é possível ver feminismo na experiência religiosa impactada por uma instituição que tem no patriarcado o seu centro há dois mil anos?

Dentro de uma produção hegemônica feminista que possui na inclusão e no acesso aos poderes o seu principal fim, a resposta é não. Sou uma mulher cis, construída dentro do feminino, e, só isso, é suficiente para impedir que eu acesse os espaços de poder e decisão na hierarquia do catolicismo romano.

Na religião patriarcal em que fui educada os testemunhos de fé que dão sentido à minha espiritualidade vieram de mulheres: mãe, irmãs, avós, religiosas, militantes de pastorais sociais. Foram estas mulheres que me fizeram entender o verbo “crer”, não para um prêmio futuro na eternidade ou para aparentar serenidade em retratos. Minha fé é aquela que se reúne na cozinha pra comer e cozinhar, sempre encontrando espaço pra quem chega e transformando a mesa no altar sagrado de quem sabe que ali acontece a missa diária, com a partilha do pão e da palavra; pede benção pra mãe e pra vó mais que ao padre; vai aos velórios e se preocupa se os/as familiares do/a falecido/a comeram alguma coisa ou estão precisando de algo; organiza as campanhas de arrecadação de alimentos e roupas na comunidade; não julga as amigas que abortaram ou abandonaram um casamento com um “bom partido”.

No entanto, são homens os que decidem como posso vivenciar a religião que estas mulheres me ensinaram. Estamos longe de avançarmos quando se trata de inclusão e poder. Mesmo nos poucos espaços que temos poder de decisão, enfrentamos os homens que nos calam, diminuem e limitam nossa força. A palavra obedecer ainda é a realidade de milhares de mulheres nas igrejas.

Contudo, a crítica feminista do Sul Global cada vez mais entende que esta perspectiva de inclusão e acesso aos Poderes é o objetivo de um feminismo que representa mulheres burguesas, brancas e cis do Norte, especialmente dos Estados Unidos da América e da Europa, ainda com a pretensão de tornar universal suas experiências, como se só existisse um único modo de ser mulher (MIÑOSO, 2020) ou como se todas nós fôssemos atravessadas somente por gênero, ignorando os impactos de outras categorias em nossos corpos como o colonialismo, o racismo, o capacitismo, a xenofobia, o classismo, a lesbofobia, a transfobia e tantas outras opressões que se interseccionalizam, e potencializam as violências que sofremos.

Assim, nas periferias do mundo, desde a segunda metade do Século XX, existe um feminismo produzido por mulheres como nós que não caminham no centro, mas nas margens. Não há como negar a influência da Teologia da Libertação para uma caracterização dos feminismos latino-americanos populares. Nas comunidades eclesiais de base, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, as mulheres, a partir da educação popular de Paulo Freire, atendiam outras mulheres que enfrentavam desemprego, alcoolismo na família, violência doméstica, pobreza, e assim denunciavam o machismo e a violência que enfrentavam por serem mulheres (SCHILD, 2017). Não era empoderamento ou inclusão numa lógica de poder que, para elas, oprimia: o que buscavam era autonomia, sair da condição de oprimidas para compartilharem o poder, com vida digna a partir do acesso aos direitos sociais e valorização de suas experiências de fé. É importante ressaltar que as mulheres não estavam alheias às produções feministas hegemônicas e, principalmente as mais jovens, em contato com a segunda onda feminista, trouxeram pautas que serão importantíssimas para todas nós, como o direito a não escolher a maternidade e o fim do controle sobre nossa sexualidade.

Foi deste feminismo, destas mulheres que vivenciaram a Teologia da Libertação e posteriormente a Teologia Feminista da Libertação nas CEB’s, que nasceu Católicas Pelo Direito de Decidir (CDD) na década de 1990. A Organização Não-Governamental foi formada por mulheres de tradição religiosa cristã, principalmente católica-romana, e trazia como principais defesas: democracia, Estado Laico, acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, oposição a todo fundamentalismo religioso. As CDD vão buscar tanto nas produções feministas hegemônicas, quanto nas tradições católicas mais antigas e no catolicismo progressista, caminhos para fundamentar uma teologia feminista que promova autonomia às mulheres, com acesso a direitos.

Porém, o viés político destes debates não são trilhados por caminhos homogêneos: são muitos os questionamentos que emergem de feministas que menosprezam a perspectiva religiosa e dizem que não somos feministas se não rompermos com as religiões; e maiores ainda são os questionamentos das instituições religiosas que, fundamentadas numa percepção hegemônica de catolicismo (que se consolidou já no século XIX, ainda que dialogue com muitas tradições católicas medievais), nos enxergam como hereges, ex-comungadas e não-católicas, querendo, inclusive, que mudemos nosso nome e paremos de falar que somos católicas.

Além da coordenação, que tem sede em São Paulo/SP, CDD atua na formação de ativistas que dialogam a partir de feminismos e religiões em todas as regiões do Brasil. Eu sou uma das ativistas do Sul, vivo no Paraná e desde 2015 componho esta rede que me fez entender o espaço político e religioso que ocupo.

Sou filha de uma família católica tradicional e durante boa parte da minha infância, adolescência e juventude participei dos espaços católicos, principalmente voltados à formação social e dignidade da pessoa humana. No fim da década de 1990 e início dos anos 2000, lembro da forte campanha contra a ALCA, pelo fim do neoliberalismo, as Campanhas da Fraternidade por educação, trabalho, dignidade humana, direitos indígenas e tantas outras que fazíamos formação por todo o ano. Já na adolescência, na Pastoral da Juventude, pautávamos a vida da juventude e o acesso a direitos para os/as jovens. Foram nesses espaços, pautando também a situação de violência contra as mulheres, que eu percebi que era feminista, ainda que só nos últimos dez anos tenha assumido a palavra no meu vocabulário.

Meu maior conflito em me assumir feminista era justamente a questão em torno dos direitos sexuais e reprodutivos. A formação que recebi em CDD me possibilitou não enxergar mais o aborto como pecado, ainda que defendesse e entendesse sua legalização enquanto direito reprodutivo. Eu tinha muita vergonha de falar sobre o assunto em qualquer espaço. Com nossas formações e acessando a vasta produção intelectual de CDD, entendi o quanto a tradição católica é muito mais plural do que se apresenta dentro das igrejas, e tudo isso é discutido e debatido dentro de CDD. Nossos argumentos a favor dos direitos sexuais e reprodutivos são políticos, jurídicos, mas também religiosos: o aborto não é um dogma de fé; nem sempre foi visto como pecado contra a vida pela Igreja;  ocorreram debates sobre o início da vida dentro do cristianismo por toda a sua história, nunca se chegando num consenso; a tradição do “recurso à consciência”, ponderando sobre si e sobre o/a outro/a suas ações dialoga com a questão do início da vida; Ubi Dubium Ibi Libertas (Onde há dúvida, há liberdade), ou seja, se existem dúvidas sobre uma questão moral, existe liberdade na busca de sua resposta. Não estou fora do catolicismo quando se trata de aborto e outras questões reprodutivas, apenas busco outras fontes não hegemônicas dentro do catolicismo para embasar minha compreensão.

O ativismo em CDD possibilitou a interseccionalidade das experiências religiosas e dos tantos feminismos, especialmente os que estão no Sul Global, ainda que nunca tenhamos deixado de dialogar também com as feministas do Norte, com quem realizamos intercâmbios necessários para alinhamento de pautas e trocas de saberes. Esta interseccionalidade significou perceber o quanto o catolicismo atravessou meu corpo, meu modo de enxergar o mundo e, através de tantas produções feministas, abandonar o que não me serve mais e ressignificar tantas práticas de fé: deixei de ler a Bíblia na esperança de ressignificar a ação de Abraão, Jacó, Davi e tantos outros homens, percebi que preciso buscar outras referências para basear a minha fé, e, felizmente, estou cercada por grandes testemunhos de mulheres que não me permitem desanimar. Da mesma forma, a construção de uma teologia feminista e libertadora me possibilita analisar criticamente as práticas dos feminismos que não promovem autonomia à minha realidade. Um feminismo que despreza mulheres que sofrem violência nos espaços eclesiais ou que despreza nossa fé, tão necessária às nossas vidas, também não nos liberta.

Esta me parece a contribuição mais necessária do ativismo em CDD: é uma opção pessoal de posicionamento que nos permite enxergar o discurso salvacionista religioso na política e na sociedade em geral, mas, mais que teorizar, nos convida a arquitetar nossas narrativas e diálogos com as mulheres, principalmente as que estão nos espaços religiosos. Este diálogo possível e necessário entre feminismo e religião nos possibilita criar pontes com mulheres que sofrem violências em silêncio, que o discurso epistêmico e social do feminismo não atinge por toda a construção social que vivenciaram.

Não queremos converter ninguém ao feminismo, tampouco ao feminismo cristão, mas sabemos que a experiência religiosa é muito importante para milhões de mulheres em todo o Brasil, por isso, entendemos que nosso ativismo, que nos posiciona frente os fundamentalismos religiosos e busca discursos feministas que abracem a experiência de fé das mulheres, nos traz pontes para a emancipação e fortalecimento das mulheres nos espaços que ocupam: casa, trabalho, pastorais sociais, movimentos eclesiais.

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Neste ativismo, uma das experiências que mais me marcou ocorreu em 2017, num encontro com um grupo de mulheres de um movimento eclesial católico. Entendi que era um encontro com jovens mulheres e preparei uma fala baseada em empoderamento e liberdade, algo que muito se falava naquele momento em específico.

Ao chegar no local, me deparei com um grupo de mulheres entre quarenta e sessenta anos, que, antes, estavam rezando o terço. Me apavorei ao me deparar com aquela realidade, mas, a partir da troca com as mulheres de nossa rede, reorganizei minha proposta de fala e propus um exercício sobre o poder de homens e mulheres. Perguntei sobre as comunidades de cada uma, quem eram as pessoas responsáveis pelo cuidado, pelas visitas aos doentes, pela liturgia, etc. Elas diziam “as mulheres” ou “em sua maioria mulheres”. Depois, questionei quem fazia parte das coordenações, quem decidia o futuro da comunidade, quem celebrava a missa e elas responderam “os homens”. Neste momento percebemos que tínhamos mais em comum do que diferenças, especialmente nas experiências de fé, e elas contaram as histórias das situações de violência que passavam, mas também de como resistiam naquele espaço. Uma delas sintetizou tudo numa frase: “temos umas às outras, nos ajudamos e ai de quem mexer com a gente: não estamos sós, e Nossa Senhora nos protege”. Ao fim, muitas vieram conversar comigo e falaram da necessidade de falas como aquela e de estarmos também na Igreja, falando da importância das mulheres e visibilizando o que elas faziam.

Aqui, retomo que não se trata de buscar inclusão dentro de uma lógica patriarcal, mas de nos situarmos dentro destas instituições e, a partir de nossas ações de solidariedade, encontrarmos resistência e outros caminhos para percorrer, que fortaleçam nossas espiritualidades e autonomias. Também precisamos entender até onde podemos ir nas instituições, especialmente dentro da Igreja Católica que, por mais que se mostre acolhedora e inclusiva, pouco avançou institucionalmente com a presença de mulheres. Respeito profundamente as companheiras que lutam pelo sarcerdócio feminino, mas entendo que a Igreja não é um fim, mas um caminho para construirmos nossas espiritualidades a partir do catolicismo, mas também com outras experiências desprezadas, que nos fazem ver e agir no mundo a partir de nossos corpos e nossas histórias.

O ativismo dentro de CDD possibilita o diálogo entre mundos que se colocam como contraditórios e que nos desafiam a encontrar mais pontes, mesmo que os muros sejam mais visíveis. Os enfrentamentos são diários, as perseguições, os cancelamentos, mas, como a maior parte das mulheres, que estão sobrevivendo no cristianismo desde o seu início, na nossa rede nos damos as mãos e dizemos juntas: “temos umas às outras, nos ajudamos e ai de quem mexer com a gente: não estamos sós”.


REFERÊNCIAS 

MIÑOSO, Yuderkys Espinosa. Fazendo uma genealogia da experiência: o método rumo a uma crítica da colonialidade da razão feminista a partir da experiência histórica na América Latina. HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 96 – 119, 2020.

SCHILD, Veronica. Feminismo e Neoliberalismo na América Latina. Revista Nueva Sociedad em Português: nuso número, p. 98-113, jun. 2017.  Acesso em 30.07.2021.