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A ameaça em amarelo

A ameaça em amarelo

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Conheci a Pastora Odja Barros em setembro de 2016, no Festival Reimaginar, que foi organizado pela Plataforma Intersecções. Ela estava com seu marido e suas duas filhas. Nós nos divertimos demais juntas! Quem estava lá sabe como nós, literalmente, celebramos aquele encontro. Nos vimos poucas vezes depois do festival. Não estou certa, mas acho que somente nos congressos de Gênero e Religião da EST (ah, o saudoso GT bigodinho da Gê!). Mesmo distantes, transitamos, ainda que virtualmente, por muitos espaços em comum. Volta e meia trocamos alguma mensagem. Respeito Odja como pastora, como acadêmica, como companheira.

No dia 6 de dezembro de 2021, Pra. Odja postou uma imagem em suas redes sociais que circulou em diversos lugares. A imagem era dela com um microfone em mãos, atrás de uma mesa/altar com uma bandeira LGBT em cima, celebrando o casamento entre duas mulheres. Merece destaque o amarelo da fotografia, da roupa que Odja vestia, contrastando com o branco dos vestidos das noivas.

Perdi as contas de quantas vezes vi essa foto circulando. Confesso, que, como clériga lésbica e cristã, me causou alguma surpresa a repercussão do evento, pois conheço vários aliados que celebram casamentos homo/trans/afetivos. As Igrejas da Comunidade Metropolitana, por exemplo, celebram casamentos homo/trans/afetivos nos Estados Unidos, desde 1968, antes mesmo do reconhecimento civil do casamento igualitário. E, no Brasil, essa sempre foi uma agenda disputada pela denominação. Além disso, vários aliados já realizam esse tipo de cerimônia, como o Pr. Zé Barbosa, o Pr. Henrique Vieira. Eu mesma fui uma das celebrantes de um casamento comunitário entre mais de 40 casais LGBTI+ em Belo Horizonte, em 2018. De qualquer forma, celebrei aquele momento que foi considerado pela UOL um “ato histórico”.

Foi, então, que no dia 14 de dezembro, fiquei sabendo que a Pastora Odja havia recebido uma ameaça de morte por causa justamente da celebração do casamento. Sua filha, Alana Barros, postou em uma rede social:

“A minha mãe recebeu AMEAÇA DE MORTE no Instagram dela. Um louco que se diz de Maceió, mandou foto de arma, áudios dizendo que estava monitorando ela e a família, que vai dar CINCO tiros da cabeça dela por celebrar um casamento homoafetivo. Já fomos na delegacia, fizemos o boletim de ocorrência e estamos agora na Secretaria de Direitos Humanos para formalizar outra denúncia. ISSO É O QUE O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO FAZ COM AS PESSOAS, ELE DIZ QUE VAI COLOCAR UMA ARMA NA BOCA DA MINHA MÃE!! EU TÔ SEM CHÃO COM ISSO TUDO” (destaques conforme post original)

Antes de qualquer coisa que eu possa dizer em relação ao tema, deixo aqui publicizado meu amor, respeito e apoio à Pra. Odja e sua família. É fácil perceber na denúncia a dor e a indignação de Alana. A ameaça é à vida da Pra. Odja, mas afeta diretamente sua família e, também, sua comunidade de fé, a Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió, que já há alguns anos tem se posicionado em favor da radical inclusão de pessoas LGBTI+.

Diante das ameaças, a primeira pergunta que me vem à mente é: “pastores e pastoras progressistas, vocês que têm se colocado em favor de pessoas LGBTI+, vocês estão dispostos a passarem por isso?”

Existem, pelo menos, dois tipos de relações que se dão entre as autodenominadas igrejas evangélicas progressistas e as pessoas LGBTI+. A primeira relação se dá em um posicionamento radicalmente em favor da pauta LGBTI+.  A segunda, e infelizmente mais comum, é de acolhimento às pessoas LGBTI+, mas não à pauta (agenda, bandeira) LGBTI+, porque afirmam que ela mais separa do que agrega e que não é estratégica em relação aos ativismos progressistas.

Pra. Odja é da corajosa turma do primeiro tipo de relação. Uma coisa é dizer que apoia, outra é publicizar isso em posts para conseguir likes nas redes sociais. Mas, o que abala o fundamentalismo religioso é a ousadia de transformar a dinâmica da religião em favor da vida de TODAS as pessoas. O casamento é um sacramento para muitas tradições religiosas. É a afirmação da presença da graça de Deus em uma união de amor. Celebrar um casamento homo/trans/afetivo é enfrentar os dogmas, os ritos e as liturgias da tradição provocando uma ruptura histórica com a exclusão feita em nome de uma fé no desamor.

Ao se colocar como sacerdotisa do amor inclusivo, Pra. Odja operou como um canal da graça de Deus, abençoando o que, por milênios, foi amaldiçoado: o amor entre iguais. E foi naquele lugar de amor, que ela, à semelhança de Cristo, pode experimentar a dor do outro, da outra. Pois, o que foi lançado como ameaça contra a Pra. Odja – e que seja apenas isso, uma ameaça – é, de fato, a realidade de centenas de pessoas LGBTI+.

A cada 1 hora, uma pessoa LGBTI+ é agredida no Brasil. 

A cada 19 horas, uma pessoa LGBTI+ é morta no Brasil.

A cada 26 horas, uma pessoa trans é assassinada no Brasil. 

Não nos enganemos. O fundamentalismo religioso que está por trás da ameaça de morte contra a Pra. Odja é o mesmo substrato da violência contra pessoas LGBTI+ no Brasil. O violento cristianismo da colonização deixou marcas profundas em nossa forma de nos relacionarmos com a sexualidade. O binarismo de gênero é a ferramenta mais eficiente do patriarcado. E é por isso, que nesse contexto, eu me pergunto por que, então, diante de tantas mortes, de tanta violência contra pessoas LGBTI+, a foto do casamento despertou tanta comoção (para o mal e para o bem)? Qual é a “ameaçadora novidade” daquela imagem?

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Primeiramente, não podemos ignorar a força das mídias sociais nesses últimos tempos e a visibilidade que elas deram para o casamento celebrado pela Pra. Odja. Como eu disse anteriormente, a notícia na UOL e o amplo compartilhamento nas redes permitiram que a imagem circulasse em lugares diversos. E nós sabemos, a publicização do amor dissidente abala, o já tão frágil, edifício do patriarcado, sobre o qual se sustentam a heterossexualidade, a cisgeneridade, o machismo e o sexismo.

Em segundo lugar, é importante destacar o peso da tradição que o uso da palavra “batista” evocou. Aquele não era apenas um casamento igualitário, era um “casamento igualitário batista”. Há uma disputa importante em curso sobre o que significa ser batista. Basta nos lembrarmos que no dia 4 de dezembro de 2021 o Pr. Ed René Kivitz anunciou que foi desligado da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil.

Finalmente, mas sem a pretensão de esgotar o debate, para mim o que é mais ameaçador na imagem da celebração do casamento é que são três mulheres. Três mulheres! Três mulheres desafiando o regime patriarcal de maneira contundente. A ameaça não está somente no fato de duas mulheres estarem se casando, mas no fato de uma mulher se colocar no sacerdotal papel de realizar a benção do casamento, no sacerdotal papel de ser mediadora da graça, no sacerdotal papel de validação pública do amor entre iguais. Não podemos nos esquecer que no ambiente tradicional da religião, a imagem da mulher como líder causa sempre uma ruptura nas hierarquias de gênero. Uma mulher celebrando o casamento entre duas mulheres. Uma recriação da sagrada imagem da trindade, que é a presença plural e diversa de Deus entre nós.

Olhando novamente para a imagem do casamento, com todo aquele amarelo iluminando o momento, me lembro de um trecho do poema do Pr. Henrique Vieira, declamado na música Principia do Emicida:

“O amor é o segredo de tudo

E eu pinto tudo em amarelo”

Que pintemos o mundo de amarelo. Que a mobilização em apoio à Pra. Odja desperte uma discussão profunda sobre os posicionamentos das igrejas evangélicas em relação às pessoas LGBTI+. Que esse seja o começo de uma onda amarela de apoio e solidariedade às pessoas que são ameaçadas, violentadas, mortas e assassinadas por amarem quem amam e serem quem são.