No dia 11 de maio, teve início a segunda etapa da “guerra” contra a pandemia do coronavírus, proclamada pelo presidente da França, Emannuel Macron, no dia 13 de março. Após um período de aproximadamente 60 dias de confinamento super restrito, o chamado lockdown, iniciou-se o período de “desconfinamento progressivo” que irá, caso não haja uma segunda onda pandêmica, até o dia 2 de junho. O objetivo principal desse “desconfinamento” é fazer a economia voltar a rodar minimamente sem, no entanto, voltar a sobrecarregar os hospitais.
Nesta segunda etapa, o comércio (exceto bares, restaurantes e cafés) começou gradualmente a abrir suas portas, o transporte público voltou a funcionar com mais frequência, as escolas maternais e do primeiro ciclo do ensino fundamental voltaram a acolher algumas (poucas) crianças, as empresas que não tinham como continuar com o trabalho remoto, retomaram suas atividades presenciais. No entanto, as igrejas, mesquitas, sinagogas, os templos de maneira geral, permaneceram proibidas de realizar seus cultos, missas e cerimônias coletivas de forma presencial.
Esta decisão, anunciada dia 28 de abril, causou um grande mal-estar para o governo francês e uma forte reação tanto da Igreja Católica, quanto de alguns senadores e deputados da direita. O primeiro-ministro Édouard Philippe voltou atrás e disse, então, que a partir do dia 29 de maio, os cultos estariam liberados, numa tentativa de acalmar os católicos, assegurando a missa de Pentecostes. No entanto, alguns líderes muçulmanos reclamaram por não poderem realizar sua importante cerimônia de encerramento do período do Ramadan, a Aïd al-Fitr, no dia 24 de maio.
De uma certa forma, o tão esperado “novo normal” trouxe de volta as antigas disputas políticas quanto à liberdade religiosa e à imparcialidade do estado laico francês. E, se no início do confinamento restrito, a grande maioria dos religiosos concordaram com a proibição dos cultos, agora o cenário é outro. Ainda que os líderes protestantes, evangélicos, judeus e uma parte dos mulçumanos, continuem apoiando as decisões do governo, a Igreja Católica (que tem maior força histórica e maior representatividade no parlamento) tem se posicionado contra.
Embora reconheça que seria, de fato, difícil controlar as aglomerações e manter os “gestos de barreira” nestes espaços de culto, duas questões me veem a mente sobre esta situação. A primeira diz respeito a uma certa contradição, pois os cultos não são permitidos, mas as grandes lojas voltaram a abrir e já têm fila na porta. Ou seja, o objetivo principal de fazer rodar a economia se justifica, no entanto, desconsidera totalmente as subjetividades religiosas dos indivíduos e as coloca em segundo plano, não como elemento essencial à vida. A segunda questão está relacionada à dependência, principalmente no caso da Igreja Católica, do “espaço sagrado” (que, aliás, foi muito bem explorado por diversos colegas na edição atual desta revista) aqui, no caso, representado pela igreja e à necessidade das liturgias oficiais para manter a fidelidade de seus adeptos. Talvez seja o momento de repensarem, também isso, e de entenderem que a eucaristia deve poder se realizar de outra forma, para além da presencial. Afinal, nem tudo precisa continuar igual no “novo normal”.
Referências
BOZON, Sebastien. Déconfinement : le jeu délicat de la France avec les libertés de culte.
Doutoranda em Sciences Religieuses pela École Pratique des Hautes Études- EPHE (Paris Sciences et Lettres), Mestra em em Ciências da Religião pela PUC-Minas, Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estácio de Sá – RJ. Objetos de pesquisa: Diálogo Intercultural, Inter-religioso e Interconvicções, Pluralismo Religioso, a obra de Raimon Panikkar, Hinduísmo (Vedanta Advaita) e Cristianismo. É membro do Grupo de Pesquisa REPLUDI (Religião, Pluralismo e Diálogo) do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-Minas.