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Dezmandamentos: “Não farás para ti imagem esculpida…”

Dezmandamentos: “Não farás para ti imagem esculpida…”

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Terceiro texto da série “Dezmandamentos”. Essa é uma série de conteúdo teológico e pastoral voltada para a leitura dos Dez Mandamentos a partir das experiências de dissidentes sexuais e de gênero. Para ler o segundo texto, clique aqui.

Êxodo 20, 4-6 “Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam e uso de misericórdia com milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos”

Eu não debutei. Sou de uma geração que ao fazer 15 anos ou a gente ganhava uma festa ou uma viagem para a Disney. Não ganhei nem uma nem outra. Dos meus pais, dentre alguns presentes que me deram, ganhei um urso panda de pelúcia comprado na importadora Chen. Eu nunca gostei de bichos de pelúcia, principalmente, por causa das minhas alergias. Mas, aquele ursinho tinha uma pelúcia muito especial. Quem me conhece sabe que tenho problema com texturas. Alguns tipos de tecido me dão gastura. Mas, aquela pelúcia me acalmava. Por alguns anos mantive aquele urso por perto, até que ele foi parar em uma das prateleiras do meu quarto.

Guardei com carinho o presente recebi dos meus pais… até me tornar uma pessoa “terrivelmente evangélica”. Eu me converti a fé evangélica por meio da evangelização de um grupo de jovens norte-americanos em missão pelo Brasil. Eles eram, em sua maioria, batistas e presbiterianos. Enquanto eu era discipulada por esse grupo, acabei sendo convidada para participar de um “Encontro” com uma igreja neopentecostal. Há uns 20 anos, no Brasil, começou um movimento chamado “G12”. Um grupo de líderes evangélicos se autoproclamaram apóstolos e apóstolas e se organizaram em redes de liderança com 12 pessoas. Um apóstolo tinha seus 12, que tinha seus 12, etc. Esses 12 eram líderes de “células”, que eram grupos de evangelização e formação que se reuniam no ambiente doméstico durante a semana. O objetivo era “conquistar o Brasil para o Senhor Jesus” por meio igrejas que iam se tornando megaigrejas.

Uma das atividades desse movimento eram os “Encontros” – retiros de três dias, nos quais além do jejum de comida, havia o jejum de conversa. Nesses dias ninguém conversava com ninguém e, ao voltarem do retiro, também não se podia contar o que havia acontecido. A única coisa que se podia dizer era: “O encontro é tremendo!”. Durante o retiro, havia quebra de maldições, curas e libertações. Me lembro de receber uma lista enorme com “pecados” que deveriam ser assinalados e depois lançados na fogueira. Gastei algum tempo preenchendo aquela lista… E, ao voltar tremendo do “encontro tremendo”, eu tinha a certeza de que havia algo muito errado comigo e, por isso, eu precisava ser acompanhada por aquela igreja.

Das inúmeras atividades que tive que cumprir no intuito de “não dar brecha a Satanás” na minha vida, uma delas foi queimar todas as imagens que eu tinha. As imagens não eram somente imagens religiosas – que, na verdade, eu nem tinha – mas, eram, também, qualquer imagem que reproduzisse “figura do que há em cima no céu, em baixo na terra, ou nas águas debaixo da terra”. Me lembro de pegar aquele ursinho panda de pelúcia e olhar para ele convicta de que nele havia algo de muito ruim. Era óbvio que muitas das coisas ruins que eu sentia tinham a ver com aquele ursinho que ficava em meu quarto, afinal, a única forma de arrancar o “mal” que havia dentro de mim era localizá-lo fora de mim. O urso e tantos outros objetos foram queimados. E, na luta contra o que me ensinavam ser idolatria, eu acabei me tornando uma idólatra.

Eu idolatrava a minha pastora. As relações de poder no ambiente religioso estruturam-se em hierarquias que, ao mesmo tempo em que distanciam o líder do membro, podem os unir em uma relação de dependência. No contexto evangélico, muitas vezes há uma “pastorlatria”, na qual o pastor se torna não somente objeto de adoração, mas também o mediador das relações com o Sagrado. Como “ungidas do Senhor” e “autoridades divinamente instituídas”, as lideranças pastorais performam um grau superior de acesso ao Sagrado e tudo o que falam passa a ser “palavra divina”. O que narro como realidade na igreja pela qual passei não era uma dinâmica apenas de lá, nem ao menos somente da igreja evangélica, pois o contexto religioso tão rico em ritos, liturgias e mistério acaba sendo o lugar propício para que essas relações de poder mediadas pelo discurso da fé se estabeleçam.

Durante os anos em que estive nessa comunidade, tudo o que era dito pela pastora tinha um poder enorme sobre a minha vida. Para mim, ela era uma pessoa que tinha conhecimento privilegiado da vontade de Deus, e, por isso, tudo o que ela me dizia era o próprio Deus se comunicando comigo. Nesse ambiente, todas as convocações para jejum, orações, e para a negação do que eu era no mais íntimo, foram atendidas prontamente. Por anos, eu não sabia dizer que tipo de amor era aquele que eu sentia por ela, amor que tirava de mim o gôzo pela vida, amor que me conduzia cega por beiradas de precipícios, amor que mutilava meu corpo, amor que me fazia desaprender a amar. Muitas vezes e por muitas pessoas, meu amor pela pastora foi interpretado como um amor lésbico. Mas, nunca foi. Antes fosse… porque talvez teria sido mais fácil lidar com um amor erótico não correspondido do que com um “amor idólatra”. A maneira com a qual experimentávamos o Sagrado só reforçava esse “amor idólatra”, porque quanto mais eu a amava, mais perto de Deus eu estava.

“Amor idólatra”, será possível pensar nessa categoria? Talvez esse seja o maior dos sacrilégios: pensar no amor como idolatria. Afinal,

O amor dá.

A idolatria exige.

O amor abre as portas.

A idolatria tranca as janelas.

O amor se coloca de corpo inteiro.

A idolatria, de joelhos.

O amor sara.

A idolatria se automutila.

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O amor liberta.

A idolatria aprisiona.

O amor ama.

A idolatria odeia sua incapacidade de amar.

Olhando hoje para o passado com olhos agora mais secos, percebo que a idolatria não somente cria imagens, mas nós mesmas passamos a ser imagens imexíveis. Idolatrar nos torna uma imagem, uma aquarela da nossa realidade, já não nos movemos, não sonhamos, apenas esperamos por uma intervenção divina. Nessa relação de idolatria, em um contexto religioso, ouvir que seu corpo é pecado, que seu sexo é pecado, que seu desejo é pecado, é uma sentença de morte, ainda que se permaneça viva. Durante anos eu entrei na igreja deixando do lado de fora meu corpo. Levantar as mãos hoje para a adorar a Deus não faz sentido algum pra mim, porque por muito tempo o que levantei foram mãos de barro, esculturas de um corpo mutilado. Com pano de saco, com cinza na cabeça, o meu corpo se tornou uma vergonha. E, ainda assim, Deus, insistentemente, me dizia, por meio da “sua ungida”, que esse era o caminho para minha santificação.

Por vezes, me perguntam a respeito do impacto que os textos bíblicos usados contra a homossexualidade tiveram sobre a minha vida. Entretanto, mais do que a Bíblia, o que realmente teve impacto sobre mim foram as palavras, as instruções, as “revelações divinas” entregues a mim por minha pastora. E aqui também revelo algo que ainda me traz muita dor e vergonha. No dorso de minha mão esquerda guardo algumas das tantas cicatrizes das minhas tentativas de lidar com meus desejos e emoções. Na palma de minha mão direita guardo a cicatriz simbólica de um tapa que dei na cara de minha pastora, quando, mais do que minha boca, meu corpo gritou por socorro e acabei me tornando o pior de mim.

“Dezmandar” o segundo mandamento requer de mim desmanchar essas imagens esculpidas em minhas memórias. A idolatria criou figuras que adorei e odiei por muito tempo: uma pastora que carregou o peso de tentar me salvar de mim mesma; uma Ana Ester reduzida a uma alma incapaz de experimentar seu corpo e suas emoções; e, além de tudo, um Deus que visitava a minha iniquidade. A idolatria dociliza corpos e imobiliza sonhos. “Dezmandar” a idolatria é perceber as instabilidades das imagens esculpidas e permitir que as fissuras quebrem de vez tudo aquilo que enquadra e limita as relações. A misericórdia do segundo mandamento está justamente no convite para que não tornemos nada estável demais. Um Deus-ídolo é aquele que não se move, que não muda. Mas, Deus é o oposto disso. Deus desmancha, Deus escorre, Deus transborda. Deus é queer. Afinal, como explicou Marcella Althaus-Reid, “o Deus Queer é um Deus inacabado. Em processo, ambíguo, de múltiplas identidades, que nunca terminamos de conhecer porque, quando o abarcamos, escapa, há mais” 1MARCELLA ALTHAUSREID: TEOLOGIA INDECENTE.

Diante da queeridade de Deus, e tendo reconciliado meu corpo com minha fé, hoje posso dizer à pastora que um dia idolatrei: “Pastora, me perdoe por ter feito da senhora um ídolo. O barro que coloquei no seu corpo na tentativa de aprisioná-la em uma imagem foi pesado demais. Quebrar o barro na tentativa de destruir o ídolo foi mais pesado ainda. Doeu em você e ainda dói em mim. Espero que um dia você também desmanche o ídolo que fez de mim ao esperar que eu fosse alguém que eu não era. Talvez nesse dia você consiga me amar desse jeito que sou – mulher com corpo e com paixões. Te amo, não mais com um “amor idolatria”, mas agora um “amor saudade”, saudade de tudo o que nossa ideia imexível de Deus não nos deixou viver”.