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Qual é o risco de o sagrado dançar?

Qual é o risco de o sagrado dançar?

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O fetiche, entre outros aspectos, anuncia o desejo constituído pelas narrativas hegemônicas e que, de modos múltiplos, sutis e refinados, mantém as cenas sociais, afetivas, políticas, religiosas etc. “ordenadas”. Uma regulação que se ancora nos ideais e critérios que retroalimentam lógicas de castração do corpo, do afeto e das possibilidades. Nesse sentido, o discurso, enquanto ferramenta política, serve para assegurar que a realidade seja orquestrada na permanência, mesmo que a imagem seja recheada de elementos supostamente subversivos. Aliás, em tempos nos quais a descrição da realidade é imagética, precisamos colocar em xeque o fetiche, a imagem e a reafirmação daqueles ideais de regulação.

Podemos lembrar as inúmeras vezes em que as imagens de terreiros vilipendiados foram expostas e das vezes que o racismo, nas suas faces mais perversas, foi denunciado, mas, no entanto, essas imagens, na dinâmica da celeridade, não importaram, pois uma sociedade da imagem se alimenta da cena e da sua imediaticidade. Essa relação com a imagem se aporta nos valores que fazem com que, nessa mesma aparição, subjetividades e narrativas sejam esvaziadas de sentido. Nós apreendemos o que aparece e julgamos, sem muita profundidade, o que é enunciado. A descrição absoluta da imagem não permite o juízo e nos blinda também da capacidade interpretativa de enxergar o que se detém atrás da cena chapada.

Essa capacidade é enfraquecida em razão dos ideais regulatórios que normatizam percepções de mundo, isto é, que determinam a identidade como princípio direcionador das nossas capacidades relacionais. Há, nesse sentido, um fechamento agudo à diferença. Essa mesma diferença que, segundo Miskolci em seu texto Teoria Queer: um aprendizado pela diferença, “nos convida a descobrir a alteridade como parte não reconhecida do que somos”, isto é, como operação que nos descentraliza no instante em que percebemos a multiplicidade de existências e, mais, que nessa pluralidade nós também somos os outros. O fetiche pela igualdade, no entanto, nos engessa e faz com que, mesmo que usemos de figuras aparentemente transgressoras, o que está anunciado é o valor que subscreve a hegemonia.

Qual é o risco, por exemplo, de o sagrado dançar? A imagem de um sagrado anunciado como estático, permite, entre outros fatores, a reverberação de um dos princípios regulatórios mais nocivos: o enfraquecimento do corpo. Os sagrados ancestrais, isto é, os Orixás, Nkisis e Voduns dançam, e sua manifestação é axé. Axé é felicidade! O xirê, como nos mostra Odé Kileuy e Vera de Oxeguiã, em seu livro Candomblé bem explicado: nações bantu, iorubá e fon, indica a “contração dos termos em iorubá sè, fazer, e irè, brincadeira, diversão”.

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Os Orixás dançam Ijexá, Agueré e o Alujá, por exemplo, como formas específicas de demonstrar sua majestade, ancestralidade e a sua essência, que, como sabemos, anuncia a vida, pois a vida e a felicidade circunscrevem o axé.  Oxum, ao dançar o seu Ijexá, nos traz a memória da doçura, do encanto e da fertilidade. Como é significativo que o Ijexá, dançado por Oxum, quebre a lógica da imagem chapada, instaure movimento e, mais, fecunde o mundo com docilidade, em tempos de ódio e indiferença. O fetiche pela ordem anunciado pelas técnicas de poder é desmantelado na perspectiva política do xirê. Nela, isto é, na dimensão política do xirê, existe o corpo, a transformação e o sagrado. Nessa dinâmica, o interesse e o movimento dos que são constantemente subalternizados ratificam a resistência e a ancestralidade de um sagrado negro.