Candomblé quando existir é resistir
Existência e resistência são conceitos que, a longo prazo, tomam as bases de nossas discussões. Chamaremos de existir o processo pelo qual nos tornamos nós mesmos, isto é, o ato constante de elaborar nossa vida por meio de nossas escolhas. Ao resgatarmos a formulação existencialista, somos o que realizamos de nós, no mundo.
Estar no mundo não é um ato solitário. Ao contrário, nós estamos, a todo instante, diante “de”. No afã de existir, nós tomamos a consciência de que não estamos sozinhos no mundo. Além disso, somos acometidos por uma estrutura — cultural, valorativa, religiosa e econômica, por exemplo — que é, de algum modo, anterior a nós. Estamos de acordo que o ato de existir incorpora um movimento constante de fazer a si mesmo, em relação.
Essa relação não é amena. Sartre, em sua peça Entre quatro paredes, anuncia que o “inferno são os outros”. Essa formulação é bastante controversa, mas nos leva ao nosso objetivo final. Pensar a dinâmica do outro como um inferno está exatamente no fato de que ele existe e, mais, que ele não sou eu. Há um incômodo na dinâmica da alteridade. Reconhecer o outro como diferente pode ser um desafio.
Ora, nesse projeto — chamado existência —, é possível que nós assumamos dois caminhos: a) podemos empreender uma tentativa violenta de hegemonia e higienização dos corpos, crenças e afetos, b) ou erigir um lugar onde as diferenças se articulam e nos fazem mais humanos do que antes — tendo em vista que a condição humana é mais diversa e polifônica do que podemos supor. Está claro que a primeira trajetória é mais confortável e menos tensa que a segunda, mas a sua facilidade é cheia de posições opressoras.
Ao colocarmos em evidência os caminhos supracitados, podemos pensar que toda essa discussão gira em torno de um conceito bastante forte e intrigante do ponto de vista ético: a violência. Esta pode ser compreendida como o ato de suprimir, do exercício da força e da manutenção de um desnível nas relações humanas. Nesse sentido, violentar é, de forma objetiva ou simbólica, enforcar as possibilidades do outro de ser, crer, amar e, sobretudo, existir.
Violentar é abafar a voz do outro. Em termos gerais, indica uma tentativa de suprimir que ele se movimente, deseje ou pense. No fundo, a violência aparece como uma reprodução do medo do diverso e ratificação dos preconceitos que, de modo recorrente, se afastam da diferença. A contra-violência, em outro prisma, pode ser designada como a resposta a essa tentativa torpe de veto ao existir. Vamos operar, então, nessa tensão entre existir como resposta à violência, utilizando o Candomblé como lente de percepção.
Trazido por negros, o Candomblé ganha o estigma que a pele recebe em terras colonizadas: o racismo. É inevitável pensar numa polarização social e, mais, de fé, que não se alicerce num maniqueísmo: brancos (bons) versus negros (maus). Nossa estrutura social se posicionou assim e, a seu modo, reforça essa lógica até os nossos dias.
A violência contra negros foi e ainda é introjetada na vida comum, é naturalizada. Nós a escondemos, “pisamos em ovos” ao dizê-la, pois não queremos ter consciência de que reproduzimos violências e que elas, por nós, se perpetuam. No momento em que não rompemos com essa estrutura, nos tornamos vetores de mal significativo.
Ao assumir a ancestralidade, o Candomblé se insere numa resposta a esse mal significativo. Crer como um negro e, mais, cultuar um(a) Deus(a) negro (a) é, além de transcendente, político. A realidade de um candomblecista é, em sua pele, existência e culto, uma contra-violência.
Cada corpo que se movimenta no culto e fora dele, sob o compasso do Rum, Rumbi e Lê, é impregnado por um elo com a negritude e seu Sagrado. Ele existe, na medida em que se compreende no mundo e afirma a sua ancestralidade. Lemos esse movimento como uma resposta ao racismo que se mascara e que intenta contra nós, bem amiúde, pois ele representa, por vezes, a face mais sutil da violência, porém, não menos destruidora.
A intolerância religiosa não é deslocada do Racismo. A tentativa de violentar a religião e os seus adeptos se alinha ao fato de que isso é “coisa de preto”. A manutenção desse argumento é, sem dúvidas, violência. Em contrapartida, cada fio de contas, xirê ou cantiga e corpo que se embala na dança dos Orixá, Nkisis ou Voduns reafirma uma negritude que é viva e combativa. Respirar o Candomblé é, de certa forma, depurar a violência e, ao mesmo tempo, afirmar as possibilidades de existência que fogem daquela lógica hegemônica que, como sabemos, não promove o bem comum.
Professor do Departamento de Filosofia da PUC Minas. Professor da Plataforma Feminismos Plurais. Mestre em Filosofia pela FAJE. Doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas. Autor do livro Inflexões éticas. Colunista da Revista Senso. E-mail: thiagoteixeiraf@gmail.com.