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A divina socialização da transa amorosa: Bíblia e Espiritualidade

A divina socialização da transa amorosa: Bíblia e Espiritualidade

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Este título parece provocativo, mas não o escrevo para chocar as pessoas mais recatadas. Nem pretendo legitimações religiosas para trisais, transas coletivas ou surubas. Há algumas décadas, alguns grupos espiritualistas do Ocidente, que tentavam ocidentalizar antigas tradições orientais, foi acusado de promover orgias com jovens. Eles buscavam atualizar a tradição tântrica da Índia, buscando a energia da Kundaline, a serpente divina que diviniza o ato sexual. Até aqui, as pessoas que buscam experiências desse tipo não precisam justificar transas com textos bíblicos. E, ao contrário, a Bíblia tem sido sempre usada por grupos tradicionalistas e pelos que praticam o Fundamentalismo para reprimir a liberdade sexual. 

O sub-título desta reflexão deixa claro que queremos aprofundar a questão da espiritualidade na Bíblia. Não é um assunto fácil, porque a Bíblia não usa este termo e a própria noção de espiritualidade só surgiu na literatura cristã, no século IV, com Gregório de Nissa. No entanto, podemos sim, descobrir na tradição bíblica as indicações para uma mais profunda intimidade com o Mistério último que chamamos de Deus. 

O primeiro pilar da espiritualidade bíblica. 

O rabino polonês, radicado nos Estados Unidos, Abraham Heschell, (1907- 1972) se tornou amigo do pastor Martin-Luther King e junto com ele se tornou defensor dos direitos civis dos negros e das minorias. O rabino Heschell contava que, um dia, na Polônia, um homem perguntou a um rabino: 

– Você acredita mesmo, profundamente, em Deus? 

Por alguns instantes, o rabino ficou pensando e, depois, respondeu: 

– Não. Acho que, realmente, não acredito. Mas, vamos marcar uma conversa para amanhã de manhã, porque, agora devo ir à oração da noite na sinagoga. 

O homem retrucou imediatamente: 

– Mas, se você não acredita em Deus, por que vai à oração?  

A reação do rabino foi imediata: 

– E o que tem a ver uma coisa com outra? Independentemente se acredito ou não em Deus, acredito na comunidade. Se Deus existe, o que me pede é isso: acreditar na comunidade. Na comunidade, mesmo se Deus não existisse, de certa forma, passa a existir, porque, em nome dele, o amor se torna social e nos leva a atuar para transformar o mundo em um lugar de mais amor. 

Essa resposta do rabino parece comentar a passagem bíblica do livro do Êxodo, quando Moisés escuta a voz divina de dentro de um espinheiro no deserto. Ele pergunta a Deus qual o seu nome para que pudesse dizer ao faraó em nome de quem estava reivindicando libertação para o povo hebreu. Conforme o livro do Êxodo, Deus respondeu: 

– “Eu sou Aquele que serei”. (Cf. Ex 3, 14). Isso significa que é na própria caminhada de libertação que vocês saberão quem Eu sou (o verbo usado está no futuro: serei). 

Uma espiritualidade profética e ética (e não ritual e religiosa)

Esta é a razão pela qual, conforme a tradição bíblica, Deus fez com o povo hebreu uma aliança no meio do deserto. Esse pacto consistia no cumprimento de uma Ética comunitária. Conforme a fé bíblica mais antiga, Deus não pede cultos. Não institui sacerdotes profissionais. Nem pede orações. O rabino Daniel Indech afirma: “Os judeus não cultuam o Criador. Ele é perfeito e completo. Portanto, não possui necessidades e menos ainda a necessidade narcisista de ser cultuado. Toda a nossa relação com Deus tem foco em nós mesmos. (…) Como exemplo, temos o verbo lehitpalel (orar em hebraico), que utiliza uma estrutura gramatical de verbo reflexivo, indicando assim que quando oramos, não oramos porque Deus precisa desse ato humano e sim porque orar cumpre uma função de reflexão e autocorreção de postura pessoal frente ao Todo Poderoso

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Conforme a História, aquilo que podemos chamar de “religião judaica” só surgiu séculos depois, quando os judeus voltaram do cativeiro da Babilônia (século VI antes de Cristo). Só então o Judaísmo passou a existir como religião ritual e institucionalizada. A partir de então, em toda a Bíblia, existe sempre a tensão entre a religião formal e a fé profética que insiste na ética comunitária e social como forma de viver a relação com o Divino, isso é, a espiritualidade. E esta tem na relação amorosa uma das parábolas mais comuns da união com o Mistério Divino. 

Conclusão disso para as pessoas que buscam

Não é fácil entender porque, conforme os evangelhos, Jesus combateu a religião do templo e seus sacerdotes até mais do que aos opressores políticos, ligados ao Império Romano que oprimia o povo. 

De acordo com os evangelhos, um jovem rico pergunta a Jesus como podia viver a espiritualidade (na tradução da época: herdar a vida eterna), Jesus responde: – Observe os mandamentos. E o rapaz pergunta: – Quais? E Jesus lhe recorda os mandamentos da lei, mas, de fato, só cita os mandamentos que dizem respeito à ética com os outros: Ama teu pai, não roubes, etc.. Conscientemente, omite os propriamente religiosos: Amar a Deus, respeitar o sábado, etc (Cf. Mc 10, 17- 19). 

De tudo isso, podemos concluir que, conforme a Bíblia, a espiritualidade não é lei ou regra moral, nem é ascese para o autodomínio. Espiritualidade é acessar dentro de si mesmo/a aquilo que é o melhor que temos interiormente. Espiritualidade é sinônimo de amorosidade como postura de vida. Pode-se dizer que a espiritualidade é o que leva a pessoa a uma cada vez maior liberdade interior e à autenticidade mais profunda consigo mesmo/a. É o que Jesus elogia em Natanael: “Aí está um verdadeiro israelita, no qual não há duplicidade” (Jo 1, 47). Paulo e João traduzem isso por “se deixar conduzir pelo Espírito” (Rm 8 e Jo 3). Isso implica em uma atitude interior e pessoal, mas se desenvolve em comunidade, como lugar onde o amor se torna social.  

A espiritualidade fala em amor agápico, ou seja, amor de predileção. Amor como opção revolucionária que se expressa em ternura solidária. Por isso, na Bíblia, a comparação mais comum da união com o Divino são a transa sexual e o orgasmo. O próprio Jesus sempre compara o reinado divino com uma festa de casamento e compara a vinda do reino com o momento da união sexual dos dois amantes. Na parábola das dez moças, as cinco moças precavidas que esperaram o esposo chegar com azeite nas lanternas poderão entrar com o casal no quarto de núpcias, para participar da intimidade daquela união (Mt 25). A parábola se refere a um costume tribal da época, mas não deixa de ser sugestiva nesta perspectiva de uma socialização das relações afetivas e de toda a vida. Na última página da Bíblia, o livro apresenta a humanidade renovada sob a figura da “nova Jerusalém, vestida como uma noiva a esperar o esposo” (Ap 21). E o livro se conclui dizendo que “o Espírito, o sopro amoroso de Deus e a esposa dizem ao Esposo: Vem! E este responde: Eu venho em breve. Mas, quem escuta, diga também: Vem! E quem tem sede, venha e tome de graça da água da vida” (Ap 22, 17). É o casal – Deus e o ser humano novo, em sua transa amorosa que convida a toda pessoa sedenta de amor a vir e beber da água da vida, ou seja, dessa espiritualidade profética e cósmica que nos unifica, como expressava o teólogo italiano Raimon Panikkar, em uma unidade  cosmoteândrica, ou seja, o casamento íntimo entre o cosmo, Deus e a humanidade renovada

Concretamente, isso se expressa em um desnudamento interior que se despe do próprio ego e assume uma postura social revolucionária que implica em unir a auto-estima amorosa, as relações interpessoais profundas e o amor social que nos leva a transformar o mundo.  É nesta perspectiva que se pode compreender a palavra do apóstolo: “Deus é Amor. Quem vive o Amor e vive em Deus e Deus vive nessa pessoa” (1 Jo 4, 16).