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Redesenhar a Espiritualidade na Arte do Bem-Viver

Redesenhar a Espiritualidade na Arte do Bem-Viver

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© Prabuddha Sharma
© Prabuddha Sharma

Na maioria das tradições religiosas, o Mistério último é identificado com a Beleza. Até hoje, no Oriente, as maiores riquezas da arte estão nos templos hinduístas e nos mosteiros budistas. Nos países árabes, as mais maravilhosas obras de arquitetura e de bom gosto se encontram nas mesquitas islâmicas. No Brasil e em outros países do continente, é sempre uma surpresa ver uma casa pobre de periferia se transformar em um templo que é de fé, mas também de arte. Nas festas de Candomblé e Umbanda, as pessoas se revestem de Deus e dançam no casamento entre espiritualidade e arte, ou seja, uma espécie de transe no qual o Espírito Divino toma posse das pessoas para que seus corpos e seus espíritos cantem, dancem, ensaiem o futuro do universo reconciliado em ritos de pura beleza e encantamento.

Em muitas tradições indígenas, a relação com o Divino implica em cerimônias reservadas à comunidade em redor do fogo, na roda da madrugada, ou experiências pessoais com o Xamã que supõem nudez e mistério em ritos de iniciação secreta. No entanto, mesmo esses encontros íntimos com o mais Íntimo ocorrem sempre no cenário deslumbrante de santuários naturais da floresta, ou do cerrado. Podem também acontecer em uma pedra sagrada do rio São Francisco, em recantos do Pantanal, ou, para os povos andinos, nos picos gelados da cordilheira.

A arte do bem-viver na luta dura da vida

Nessas tradições dos povos originários, como também na raiz mais pura da fé judaica e cristã, a arte divina inunda as pessoas e o universo de beleza e esplendor. No entanto, atenção: ela não se manifesta na magnificência do poder, da riqueza e da superioridade. Ao contrário, se revela na pobreza da pequenez e no despojamento contido em toda cruz humana. Para os povos indígenas, cada dia mais ameaçados em sua sobrevivência, essa arte se expressa no que povos da floresta, dos pampas e das montanhas, em expressões diversas e com nuances diversificadas, denominam de Bem-viver.

Talvez nós já nos habituamos a essa linguagem e nem nos damos conta. No entanto, como essas comunidades indígenas, sejam andinas, sejam da Amazônia, ou os Guaranis do sul do continente, podem nos falar em Bem-viver? Afinal, esses grupos indígenas se situam entre as mais pobres do continente latino-americano. São comunidades crucificadas entre os garimpos, as mineradora, o latifúndio e o agronegócio que engolem suas terras, destroem sua natureza e ameaçam destruir suas culturas. Como podem ainda nos falar e até nos ensinar algo sobre o Bem-viver? Nessa própria dialética que parece contradição há uma sabedoria que é arte.

De fato, a partir do processo social e político da Insurreição Indígena na Bolívia que levou Evo Morales à presidência da República e da Revolução Cidadã no Equador, o Bem-viver se tornou paradigma de um novo caminho de civilização para toda a humanidade que quiser construir um mundo diferente, plural e mais comunitário.

A resistência dos índios em 500 anos de opressão revela em si uma sabedoria e capacidade imensa de sobrevivência física e cultural. Eles nos transmitem o Bem-viver como um processo que se expressa em relações sociais de maior justiça e igualdade entre as pessoas. Propõem que se concretize em uma organização política mais comunitária e horizontal. No entanto, como expressava Che Guevara: “Não haverá sociedade nova, sem a construção do homem novo”.

Ao mesmo tempo que lutamos por transformar as estruturas da sociedade, temos também de ir engravidando as pessoas e comunidades de uma cultura capaz de mudar, a partir do mais íntimo as pessoas e possibilite um novo jeito de ser. Isso é exatamente o que podemos chamar de espiritualidade do bem-viver.

A espiritualidade faz do bem viver a arte do mais amar

Davi Kopenawa, ianomâmi da Amazônia, conta que sua iniciação xamânica se deu através de uma bebida que altera a consciência e o tornou capaz dever e ouvir os Xapiris que, nas noites de lua, ou quando são chamados pelos Xamãs, vêm dançar na floresta1KOPENAWA, DAVI e ALBERT BRUCE, A queda do céu, Relato de um Xamã Yanomami, São Paulo, Companhia das Letras, 2015..

Nos anos 80, na beira do Araguaia, em uma praia isolada da Ilha do Bananal, um pajé Karajá se desnudava para conversar com o espírito do rio e me dizia: Não conheço você, mas vejo em seu rosto uma claridade azulada pela qual o espírito me indica que você é amigo.

E em poucos momentos, me mostrou que lhe tinham sido reveladas experiências de minha vida que ninguém havia contado. Quando lhe perguntei: Como você sabe disso? Ele me respondeu: – Recebi o dom.

Descobri a mesma intuição nas religiões afrodescendentes. Em um testemunho de suas experiências como Yalorixá do templo Opô Afonjá em Salvador, a querida Mãe Stella de Oxossi conta que a relação com os Orixás não é ensinada. É recebida. A pessoa que a acolhe “nasceu para aquilo”. Não poderia fazer outra coisa2MARIA STELLA DE AZEVEDO SANTOS, Meu tempo é agora, 2a ed., Salvador, Fundação Pierre Verger, 2010, p. 20..

Isso corresponde à tradição judaico-cristã quando afirma que a espiritualidade não é fruto de esforço. É graça. No entanto, todas essas tradições concordam que, ao mesmo tempo que a espiritualidade é um dom gratuito, essa iniciação na intimidade do Divinoprecisa de ser cultivada como uma verdadeira arte. Já no século VI, na sua regra para os monges, São Bento a chama de “arte espiritual” (RB 4). Deve ser desenvolvida como uma construção artística.

Nesse processo, é importante um esforço de clareza e amadurecimento intelectual que atinge a consciência e reforça o caminho da conversão. Igualmente se torna necessária uma disciplina que ajude a pessoa a alimentar o há de melhor em si mesma. Entretanto, esses fatores não são os determinantes. O essencial mesmo é uma abertura de todo o ser a um aprendizado afetivo que mergulhe a pessoa em uma onda de amorosidade cada vez mais profunda.

Por que falar em “amorosidade”, quando o mais simples seria dizer amor? É que, enquanto amor tem objeto direto (ama-se alguém ou alguma coisa) e na cultura vigente, tende a ser exclusivo, a amorosidade é uma energia que se espalha e concretiza o que, já nos anos 30, Mário de Andrade colocou como título de um dos seus livros: Amar, verbo intransitivo. O Bem viver se enraíza na amorosidade como princípio que norteie a vida e o agir de cada pessoa e comunidade. Quando conseguimos viver isso, as pessoas mais sensíveis podem até detectar isso na luz do nosso olhar e no nosso modo de conviver.

A sociedade individualista incentiva a competição e chega a considerar o amor como fragilidade e pura carência. No entanto, amar é a vocação mais profunda de todo ser humano. Já nos anos 60, o psicólogo e pensador norte-americano Eric Fromm explicava que amar não é algo apenas instintivo ou espontâneo. O seu livro se chama “A arte de Amar”3FROMM, ERICH, A arte de amar, 2a ed., Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1971.. Amar é uma arte que as pessoas necessitam de exercitar e de aperfeiçoar. Como um artista plástico aperfeiçoa a imagem de barro ou de madeira que plasmou até lhe dar os toques de detalhe e a fisionomia que imaginou. A espiritualidade do bem-viver se alimenta dessa arte de amar. Eu diria mais concretamente: toda paixão afetiva nasce e se alimenta da atração física e psicológica. A atração que as pessoas apaixonadas sentem parece uma luz que se acende no corpo e no espírito. Ilumina o outro que se deixa atrair como um inseto em direção à luz.  Alguém desenvolve a espiritualidade do bem-viver quando aprofunda mais e mais essa eroticidade no afã de vivê-la nas relações comunitárias e na forma de conviver com as pessoas. O Bem-viver como arte da amorosidade nos faz ser capazes de viver apaixonados/as e não somente de forma exclusiva por uma única pessoa e sim cada vez por mais gente e pela vida. Alguém ouviu de um amigo a seguinte pergunta:

– Como você consegue ser assim?
– Assim, como?
– Assim, para todos nós e sempre, todo-amor.

E a pessoa respondeu:
Assumindo minhas carências, me levantando sempre que caio e retomando o caminho para fazer da amorosidade minha forma de viver em uma expressão que liga o erótico, a empatia e a opção por viver em função do outro.

Na espiritualidade do bem viver, a arte não está quando o artista entrega a sua obra de arte pronta e acabada, mas na sua capacidade de ir aperfeiçoando-a permanentemente e sem cessar.

O nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade tem um poema que se chama “Além da terra e do céu”:

“Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas,
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!, Vamos conjugar o verbo,
fundamental, essencial,
o verbo transcendente,
acima das gramáticas,
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver”

Os materiais com os quais se esculpe a arte do bem-viver

Todo artista precisa de instrumentos para realizar a sua arte. A arte do Bem-viver se realiza no ateliê do universo e é uma construção coletiva. Um coletivo que não é apenas dos seres humanos, mas de toda a natureza. O físico e biólogo chileno Umberto Maturana descreve o processo criador da vida como permanente autopoesis, ou seja, um laboratório de construção poética da vida como um criativo e belo tecido de relações sempre mais complexas e no qual o pensar se torna fazer4Cf. MATURANA, H. e VARELA, F., A árvore da Vida – A base biológica do conhecimento humano, Campinas, Psy II, 1955..

De fato, o termo poesia deriva do verbo grego fazer. Fazer como se faz o pão. A poesia tem muito a ver com o pão, artisticamente pensado e feito com as mãos que amassam o trigo. Assim como o pão, a poesia alimenta, tem sabor e preenche o vazio que existe dentro de nós. A poesia penetra no mais íntimo de nós e nos faz descobrir a melodia secreta que faz de cada coração humano uma nascente de águas cristalinas que sussurram amor e nos faz conversar com as estrelas. É essa poesia a matriz dos olhos da alma que nos torna capazes de esculpir obras de arte em cada encontro e fazer com que mesmo coisas sem cor, cheiro nem sabor adquiram o perfume dos jasmins e o encanto de um beijo apaixonado.

A arte do Bem-viver nos leva a redimensionar o tempo e descobrir a arte de dar outro ritmo ao nosso caminhar. Assim, prestaremos mais atenção a uma florzinha que nasceu no asfalto sem graça de uma estrada e a descobrir beleza mesmo nas feiuras frequentes do dia a dia corriqueiro da vida.

Nesse momento difícil que atravessamos no Brasil, a arte do Bem-viver deve tomar um conteúdo mais explicitamente político e revolucionário na organização dos movimentos sociais. É urgente, conforme as palavras poéticas e proféticas do companheiro Pedro Tierra:

“Organizar a esperança,
Conduzir a tempestade,
romper os muros da noite,
criar sem pedir licença
um mundo de liberdade”.


Referências

  • 1
    KOPENAWA, DAVI e ALBERT BRUCE, A queda do céu, Relato de um Xamã Yanomami, São Paulo, Companhia das Letras, 2015.
  • 2
    MARIA STELLA DE AZEVEDO SANTOS, Meu tempo é agora, 2a ed., Salvador, Fundação Pierre Verger, 2010, p. 20.
  • 3
    FROMM, ERICH, A arte de amar, 2a ed., Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1971.
  • 4
    Cf. MATURANA, H. e VARELA, F., A árvore da Vida – A base biológica do conhecimento humano, Campinas, Psy II, 1955.