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Axé e Salvação – Graça e Gingado

Axé e Salvação – Graça e Gingado

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(Reformar a Reforma a partir do Pluralismo Cultural e Religioso)

Celebramos os 500 anos da Reforma em um mundo ferido por divisões que, à primeira vista, parecem irreconciliáveis. Que importância pode ter esse evento diante do sofrimento de milhares de migrantes e refugiados, condenados a viver em campos de concentração ou voltar a suas terras para morrer como vítimas da fome ou da guerra? Como olhar as feridas das divisões de 500 anos entre cristãos, quando gases venenosos são lançados sobre crianças e civis, em nome da segurança e da paz? E o que fazer diante do império dos Estados Unidos que quer retomar o controle sobre toda a América Latina e, de todos os modos, desestabiliza os governos mais progressistas do continente? Essas angústias que todos nós carregamos no coração, o papa Francisco parecia ter em mente quando, em outubro de 2016, foi à Suécia para, junto com autoridades da Federação Luterana Mundial, dar início às celebrações dos 500 anos da Reforma. Ali, ele e as autoridades da Federação Luterana Mundial assinaram um documento que assinala a passagem “Do confronto à comunhão”.

Nos anos 60, o teólogo evangélico J. A. T. Robinson publicava um livro que se tornou clássico e que tinha o título provocador de “Uma nova Reforma?”. Nesse livro, ele contava que, em 1964, ouviu do Cardeal Agustin Bea, presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos em Roma, a observação: “Da parte dos católicos, a Contra-reforma acabou!”. De fato, naquele momento, se constatava que,  no Concílio Vaticano II, a Igreja Católica incorporava várias teses de Lutero (o sacerdócio real dos cristãos, a Escritura como única fonte de revelação, etc). Acabava a época na qual a vida da Igreja Católica era condicionada pela reação contra o Protestantismo. Essa notícia, dada por uma autoridade católica diretamente ligada ao papa João XXIII, fez o teólogo evangélico pensar: “Essa notícia só será completa se também do nosso lado, protestante, pudermos reconhecer igualmente que ‘a Reforma acabou’. No entanto, com várias autoridades evangélicas, ele completa: “A reforma de Lutero deu seus frutos e de certa forma ficou no passado. Agora a perspectiva de uma nova Reforma está claramente à vista”1.

Alguns anos depois, o irmão Roger Schutz, fundador e primeiro prior da Comunidade ecumênica de Taizé, escrevia em seu diário: “Nos últimos anos, várias vezes, ouvi protestantes e, entre eles, pastores, afirmar: ‘Depois do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica respondeu às questões colocadas pela Reforma a tal ponto que o protestantismo perdeu as razões de sua existência separada. Hoje, protestos e novos desejos de reforma surgem dentro da Igreja Católica. Será que conseguiremos viver isso a partir dos princípios do Ecumenismo?”2.

Nesse ano, ao recordar os 500 anos da Reforma, esse assunto retoma com força. Sem dúvida, é fundamental para as Igrejas e para o mundo, que depois de cinco séculos de conflitos e divisões, católicos e evangélicos possam se abraçar e colaborar uns com os outros na construção de um mundo de justiça, paz e cuidado com a Terra. No entanto, apesar dos documentos e acordos assinados em comum e do acolhimento mútuo que marca esse aniversário, as Igrejas continuam separadas. Já em 1967, quando se comemorava os 450 anos da Reforma, Karl Rahner escrevia: “Diferentemente da época de Lutero, já não existe mais nenhuma divisão substancial no modo de expressar a fé entre a Igreja Católica e as Igrejas Reformadas. Não existe mais nenhum motivo de separação entre as Igrejas. No entanto, elas continuam divididas e, sob certo ponto de vista, as divisões não diminuem”3.

Para que se chegue a uma unidade visível e real, resta um bom caminho a percorrer. Não bastam bons documentos e acordos para concretizar a unidade. Desde 1925, o movimento Vida e Ação, criado pelos evangélicos engajados na ação ecumênica, afirmava: “A doutrina divide e o serviço une”4. Em nossos dias, o papa Francisco tem repetido isso. No entanto, se não se aprofundam fundamentos teológicos mais elaborados, esse ecumenismo prático também não vai muito longe. Atualmente, além dos entraves que dividem as Igrejas, existe ainda o desafio concreto do diálogo e da colaboração com as outras religiões na construção de um mundo novo possível. Isso tem se revelado, principalmente, na dificuldade da relação entre as Igrejas e as tradições espirituais afrodescendentes e indígenas. É a partir desse desafio e dessa missão fundamental que queremos analisar as mudanças nesses 500 anos e como temos necessidade de iniciar de modo diferente os próximos 500.

Lutero e os princípios exclusivistas da fé

Desde os séculos antigos, a Igreja Católica dizia que “fora da Igreja não há salvação”. No século III, Cipriano de Cartago afirmava isso com um sentido mais amplo e universal. Alguns interpretavam no sentido de que ninguém se salva sozinho. Fora da comunidade, não há salvação. Mas, no decorrer dos tempos, se repetia isso para ensinar que só existe graça e salvação no seio da Igreja Católica. Com as teses de que “Só a graça, só a Escritura, só a fé …”, Lutero criticou esse princípio exclusivista. Chegou a falar em uma Igreja que seria invisível e, portanto, bem mais ampla do que a Igreja institucional. Na segunda metade do século XX, para compreender a salvação dos que vivem fora da Igreja ou seguem outras religiões, Karl Rahner propôs o conceito de “cristãos anônimos”. Atualmente, uma visão pluralista da fé não acha justo querer reduzir os crentes de outras religiões a “cristãos anônimos”. No entanto, sem dúvida, era uma tentativa de compreender como a salvação é universal e abrange as pessoas de outras religiões. Aparentemente, esse conceito poderia se harmonizar com o a compreensão que Lutero tinha de “Igreja invisível”. No entanto, no século XVI, o reformador não podia conceber uma teologia da salvação que pudesse abranger outras religiões.

A reforma rompeu com a doutrina católica da exclusividade da salvação como se a Igreja fosse proprietária da graça e da salvação. No entanto, Lutero não conseguiu abrir-se ao valor salvífico e espiritual das outras religiões. Os reformadores e as mulheres que os acompanharam foram pessoas do seu tempo e carregaram as contradições de sua época. Lutero escreveu páginas pesadas contra os judeus e contra os muçulmanos. Condenou mesmo outros grupos cristãos (anabatistas e outros dissidentes) que pensavam diferente dele. A partir do século XV e durante o século XVI, por toda a Europa, espalhou-se o fenômeno que se chamava “a bruxaria”. Homens e mulheres, fieis a cultos e crenças pré-cristãs mantidas no campo e em alguns ambientes do interior, praticavam métodos de cura ligados às religiões da natureza. Essas pessoas, principalmente as mulheres, até por terem um comportamento mais livre do que era permitido na época, eram muito perseguidas pelas comunidades e pelas Igrejas. Como esse fenômeno ocorreu mais em países do norte da Europa do que do sul, a maioria dos processos de condenação de bruxas aconteceu em países luteranos. Um historiador, especialista nesse assunto, escreve: “A Reforma multiplicou as fogueiras para hereges e para bruxas. Não se tem o número de pessoas que as comunidades luteranas queimaram nas fogueiras, tal qual fazia a Inquisição Católica. De cada cinco pessoas condenadas à fogueira, quatro eram mulheres e acusadas de bruxaria”5.

Essa intolerância e violência contra as religiões da natureza, vinha do medo e do preconceito das comunidades cristãs contra os cultos ao demônio. Até hoje, alguns grupos pentecostais agem assim contra os cultos afrodescendentes. Lutero não mudou essa cultura preconceituosa, como também não conseguiu ligar a fé com a sua dimensão social libertadora. Por isso, chegou a aprovar a guerra contra os lavradores. Sua visão era de uma fé individual. Para ele, tratava-se de salvaguardar a dimensão pessoal e interior da fé, como resposta à graça do Cristo, único e suficiente Salvador. A Salvação e Graça são dons divinos, absolutamente gratuitos e universais. Através da cruz de Jesus, Deus redime e resgata a todos os pecadores que somos nós. No entanto, ao reler hoje esses conceitos, podemos compreendê-los de forma mais universal, sem trair o princípio fundamental de Lutero.

Lutero ensina que a única coisa importante é a graça e que o Cristo opera como Salvador universal. Se isso é verdade, já nos situa em uma visão mais ampla do que a dos meros limites do Cristianismo institucional. Tanto é assim que, na luta contra Lutero, a Igreja Católica sempre insistiu que, para a salvação, são necessários o ministério da Igreja e a mediação dos sacramentos e das indulgências. Por isso, a posição de Lutero foi rejeitada e, a partir daí, se concretizou a divisão. É tarefa das comemorações desses 500 anos, principalmente, na América Latina, fazermos uma releitura pluralista e macro-ecumênica dos princípios de Lutero.

Foto: Lutheran World Federation / Magnus Aronson

Para aprofundar mais as noções de Graça e Salvação

Hoje, não tem mais sentido repetir as discussões luteranas sobre Justificação pela Fé e Graça, em uma compreensão restrita apenas ao âmbito sacral, religiosamente institucional das Igrejas e mais ainda de forma a-histórica (sobrenatural). Há mais de 50 anos, tanto na Igreja Católica, como nas Igrejas evangélicas, teólogos e teólogas desenvolvem uma compreensão sobre a graça e salvação muito diferente da época de Lutero. Em 1973, em Bangcoc, para o mundo protestante, o Conselho Mundial de Igrejas reuniu teólogos/as e pastores/as do mundo todo e de diversas Igrejas em uma conferência internacional sobre a missão e o tema foi “A Salvação Hoje”. Com base em Lucas 4, 18, passou-se a ensinar que a Salvação e a Graça têm de ser pensadas para o ser humano integral e não apenas para o espírito. E também não podem ser vistas como destinadas apenas às pessoas individuais, e sim, devem abranger também as estruturas sociais do mundo e as comunidades6.

Em El Salvador, o padre Ignacio Ellacuría ensinou e testemunhou pelo seu martírio: “É preciso afirmar sempre: não existem duas histórias, uma sagrada e outra profana. (…) Jesus histórico veio nos mostrar que não existem dois mundos incomunicáveis: o mundo de Deus e o mundo dos homens. O que há e Jesus nos mostra isso é a oposição fundamental entre graça e pecado. Há oposição na história entre o que leva à salvação e tudo o que no mundo leva à perdição das pessoas”7.

Nos anos 90, a teóloga evangélica mexicana Elsa Támez publicou sua tese de doutorado: “Contra toda condena. La justificación por la fe desde los oprimidos”8. Ela critica a interpretação individualista dessa doutrina, como denuncia a ênfase no perdão dos pecados. Para ela, essa doutrina deve ser uma afirmação da centralidade da vida e tem como base a ressurreição. Essa reinterpretação permite uma visão a partir dos oprimidos. Certamente, a salvação divina não deve ser reduzida apenas à libertação social e política, no entanto, essa dimensão é essencial. Sem ela, a salvação perde sua verdade total. Enquanto os empobrecidos do mundo continuarem a ser excluídos da sociedade e lhes forem negados os direitos mínimos de uma vida digna, a salvação prometida pelo Cristo é diminuída em seu objetivo fundamental. No lugar da graça, o que impera é a desgraça estrutural, como negação de Deus. Ora, essa realidade de graça, quando nos abrimos ao amor, ocorre no mundo, em todas as realidades da vida, e não apenas no âmbito das Igrejas. A salvação não depende da Igreja. A Igreja deve ser testemunha de uma salvação divina que, por graça do Espírito, realiza-se no mundo inteiro, independentemente das religiões, ou através delas como comunidades de resistência cultural e de apoio às pessoas que caminham para a sua libertação integral. Ora, esse é exatamente o caso das religiões e cultos indígenas e afrodescendentes.

Salvação e graça revelam uma imagem de Deus

Hoje, não podemos nos omitir nessa discussão. De um lado, no mundo todo, os movimentos fundamentalistas testemunham um Deus que ama seus amigos e odeia seus inimigos. É uma divindade que parece  disposta a matar quem não obedece às normas do grupo dos que se creem eleitos criou em seu nome. Do outro lado, mesmo descendentes de Lutero, que insistem que Deus é graça e perdão incondicional, às vezes, sustentam posições sociais e políticas que, de modo algum, dão uma imagem generosa e gratuita de Deus. Nesse caso, não há graça.

Ao querer dizer ao mundo de hoje a mensagem de Lutero referente aos princípios básicos da Reforma (“somente a fé, somente a graça, somente a Escritura, somente o Cristo…”), temos de cuidar da imagem de Deus que passamos às pessoas. Que Deus é esse, que salva pela graça e através da cruz de Jesus? De que salvação se trata e como Ele salva? Baseados na fé, podemos dizer que a Salvação e Graça são inerentes à presença divina no universo. Estão no ser humano como elementos constituintes da vocação humana. Fazem com que sejamos cada vez mais humanos e, como tal, divinos. Todas as pessoas, em todas as religiões e culturas, são “filhas de Deus”, ou seja, são receptáculos da salvação e da graça. Não cada uma por si, mas através de suas comunidades que são assim, comunidades de salvação. A salvação é pura graça e ninguém tem controle sobre ela. O amor divino é gratuito. Não depende de religião e nem mesmo de aceitação. “Ele nos amou primeiro” (1 Jo 4, 19). O que a Igreja e a fé podem fazer é ajudar as pessoas a tomarem consciência disso e viverem de acordo com isso. No cântico de Zacarias, Lucas diz que João Batista viria: “para dar ao seu povo o conhecimento da salvação que está na graça misericordiosa do nosso Deus” (Lc 1, 77).

Nas últimas décadas, católicos e evangélicos buscaram superar a compreensão da morte de Jesus na cruz como sacrifício oferecido a Deus para o perdão dos pecados. Essa hermenêutica da cruz pode ter ajudado os primeiros cristãos, em sua cultura. No entanto, hoje, nos dá a imagem de um Deus mesquinho que, para salvar o mundo, precisaria que seu filho morresse de um modo violento e terrível.  A morte de Jesus na cruz, compreendida como martírio e não como sacrifício, deve ser força de amor para tirarmos da cruz os crucificados do mundo9.

Atualmente, para tirar da cruz os crucificados e lhes testemunhar a salvação e a graça de Deus, temos de nos fazer pobres com eles, partilhar de suas vidas e das suas lutas, como Jesus fez. Só a partir da solidariedade martirial, poderemos compreender a Salvação e a Graça de Deus e testemunhar que essa energia amorosa divina atua neles como força de libertação. A mediação de Jesus e o seu martírio na cruz, tornam-se  paradigmas para quem crê, mas não nos autoriza a restringir os dons divinos, nem a ação do Espírito. Ao contrário, o amor divino manifestado na vida de Jesus e na sua entrega total podem ser chave de compreensão para valorizar todo gesto e evento de amor e salvação que o Espírito suscita na diversidade das religiões e mesmo fora delas.

A graça e a salvação como Axé e Bem-viver

Na América Latina da primeira década desse século XXI, os povos indígenas dos Andes e outros nos fizeram descobrir o paradigma do Bem-Viver. As comunidades afrodescendentes de tradição Yorubá, chamam de Axé essa energia amorosa da Vida que está no universo e com a qual podemos entrar em comunhão e deixar que penetre em nossas vidas. Em sua História da Igreja na América Latina, Enrique Dussel aponta a Pachamama dos povos do Altiplano como imagem do Espírito Santo10. Isso significa que o Bem-Viver pode ser considerado expressão da Salvação e da Graça divina nas comunidades indígenas e, através delas, oferecida a toda a humanidade. Do mesmo modo, Leonardo Boff afirma: “A categoria central da religião Yorubá é o Axé. Ele é o equivalente ao pneuma grego, ao spiritus latino e ao ruah bíblico”11.

O Espírito Divino revela a toda a humanidade a bênção da vida como caminho amoroso e chama todas as pessoas e comunidades a esse crescimento interior que os pais da Igreja Oriental chamavam “divinização”. Cada pessoa e comunidade vive esse processo da Salvação e da Graça a partir da própria sua realidade, inseridas em uma das religiões da humanidade, ou simplesmente na integração pacífica e solidária a toda humanidade a que Deus quer bem.

As religiões afrodescendentes e as tradições indígenas consideram o Axé e o Bem-viver como expressões da graça e salvação de Deus, bênçãos divinas que engravidam de amor as pessoas e o universo.  Esse modo de ver positivamente o mundo como sagrado, a natureza como sinal da bênção divina e as pessoas como filhos e filhas do Amor (filhos de Orixás), é muito bíblico, mas contrasta com o modo tradicional de falar da fé ainda comum na Igreja Católica e em algumas Igrejas evangélicas e pentecostais que preferem ver o mundo como antro de pecado e falar da salvação como libertação do demônio e do mal. A compreensão pessimista da realidade humana e o modo tradicional de falar do pecado e da salvação é um dos elementos importantes da mensagem de Lutero. Ele herdou isso de sua formação agostiniana. Santo Agostinho chegava a chamar a humanidade de “massa damnata”12. Essa postura levou Lutero a radicalizar a necessidade da salvação como libertação do mal e do pecado e de forma que hoje chamamos de postura exclusivista no confronto entre a mensagem cristã e as outras religiões. É no contexto de um mundo considerado como perdido e condenado ao inferno, que só a fé em Cristo e a graça divina, manifestada na cruz de Cristo, podem libertar o pecador. Ao contrário disso, desde Irineu de Lyon (século II), as Igrejas orientais desenvolveram a noção de salvação como plenitude de vida (em grego: pleroma) e na linha do que hoje as comunidades indígenas latino-americanas afirmam do Bem-viver como paradigma civilizatório.

Uma visão macro-ecumênica da mensagem da Reforma

Ao insistir na centralidade dos Evangelhos para a fé cristã e para a vida das Igrejas, Lutero revaloriza a encarnação de Jesus. Na Idade Média, os dogmas tinham acentuado mais uma imagem de Cristo glorioso e senhor do universo. Ao insistir na realidade humana de Jesus como sacramento da divindade, Lutero acaba por valorizar o corpo e a vida em si mesma. Atualmente, a leitura bíblica feita na América Latina leva as Igrejas a revalorizar a realidade corporal, e mesmo erótica, como dimensão a ser assumida na fé. Nesse caminho, a relação de gêneros é fundamental, e os cristãos têm aprendido muito com as religiões originárias essa espiritualidade macro-ecumênica que redescobre o protagonismo da mulher, a liberdade da orientação sexual e a sacralidade das relações afetuosas e comunitárias na dança que integra Deus, a comunidade e a natureza. É claro que não poderíamos pedir essa visão a Lutero no século XVI. No entanto, ao insistir que só a fé é suficiente para que a graça possa atuar em nós, Lutero parece mais próximo dessa forma de viver a espiritualidade do que o Catolicismo tradicional com toda a sua carga de patriarcalismo e leitura fundamentalista dos mandamentos bíblicos. Aí está justamente um ponto no qual a reforma da reforma pode nos trazer novos e fecundos frutos.     

No século XX, uma grande graça divina para todas as Igrejas cristãs foi o surgimento do movimento pentecostal e, dentro das Igrejas históricas, os movimentos carismáticos e de reavivamento espiritual. O que aprendemos nos evangelhos é que, em sua vida, Jesus sempre soube unir a dimensão profética e revolucionária da sua ação à abertura total à gratuidade da Salvação e Graça que o Pai dá a todos e se manifesta especialmente na dimensão pentecostal da fé. Já nos anos 90, o padre José Comblin sonhava com o dia em que pentecostais e carismáticos: “[…] possam perceber o significado do acontecimento do Espírito para a marcha do mundo e possam assim ser testemunhas disso, sem se restringir ao dualismo platônico que divide corpo e alma, esse mundo e o sobrenatural e as realidades concretas e os dons espirituais13”.

A teóloga Elizabeth Johnson afirma: “A experiência do Espírito se realiza na história e através da história do mundo. […] Onde estejamos aspirando algo inefavelmente a mais do que aquilo que aparece, principalmente se esse algo é mediatizado pela beleza e pela alegria, ali já transpira a experiência do Espírito”14.

Hoje, qualquer movimento de reforma da Reforma tem de aprofundar o desafio do Pentecostalismo para todo o Cristianismo e encontrar um modo de unir a dimensão pentecostal à visão mais revolucionária e libertária da fé. Não podemos chamar os cultos afrodescendentes de “pentecostais”, porque essa é uma linguagem exclusivamente cristã. Nem se trata de “cristianizar” o Candomblé, mas se o Espírito de Deus é universal, ele pode manifestar-se na glossolalia ou nas curas de uma Igreja pentecostal, tanto quanto nos Orixás que baixam sobre os fiéis em um Xirê do Candomblé ou Umbanda. Quem sabe se o aprofundamento da dimensão pentecostal socio-libertadora pode levar as comunidades cristãs a compreenderem melhor e se solidarizarem de forma mais profunda com as comunidades afro.

Para concluir, mesmo provisoriamente, esse assunto

No momento histórico em que vivemos, nenhuma reflexão teológica pode ignorar “a profecia da Terra” e o desafio que uma Ecologia integral lança para a fé cristã e para todas as religiões, comprometidas com o bem da humanidade.

Para Lutero, a base da Reforma foi o seu comentário à carta de Paulo aos romanos. O centro dessa carta é o capítulo 8, no qual Paulo fala dos gemidos inefáveis do Espírito dentro de nós e afirma que esse Espírito engravida a criação inteira. Essa sofre dores como de parto e espera conosco, seres humanos, a libertação (Rm 8, 22- 26). Aqui já aludimos a que um elemento fundamental da espiritualidade ecumênica é retomar a teologia da bênção que nos faz crer de novo na bondade fundamental de todo ser criado e na compreensão cósmica da encarnação do Verbo Divino. A partir da humanidade de Jesus de Nazaré, a Palavra Divina continua se fazendo carne em toda realidade humana e cósmica.

Bem concretamente, na Europa e países de primeiro mundo, as comunidades desenvolvem toda uma espiritualidade dos bens comuns, como expressão das lutas sociais contra o Capitalismo e que se une à espiritualidade do Bem-viver andino, do Axé afro-brasileiro, da compaixão dos budistas e da harmonia do Taoísmo.

Não se trata apenas de uma linguagem metafórica. Devemos crer que é real, como atualização da salvação e da graça em um novo paradigma de Ecologia Integral que, atualmente todas as Igrejas estão apontando como perspectiva. Só assim, seremos capazes de mostrar que o diálogo católico-luterano sobre Salvação e Graça e o mutirão de todas as Igrejas para reformar a Reforma nessa comemoração dos 500 anos de Lutero, têm sentido para o mundo e nos fazem escutar, agora, nesse momento nosso e do mundo, a palavra do Mistério, Pai e Mãe da Vida, que, conforme o Apocalipse, nos diz: “Faço novas todas as coisas” (Ap. 21, 5).


Referências

1 ROBINSON, J.A.T., Uma nova Reforma?, (tradução do inglês: The New Reformation?, SCM Press, 1965), Lisboa, Ed. Moraes, 1968, pp. 14- 15.
2F.ROGER, prieur de Taizé, Ta fête soit sans fin, Les Presses de Taizé, 1971, p. 33.
3RAHNER, KARL, La gracia como libertad, Barcelona, Ed. Herder, 1972, p. 201.
4Sobre isso ver: DIAS, ZWINGLIO, 50 anos  gestando o Ecumenismo, in Tempo e Presença, n. 301, outubro de 1998, p. 6- 7.
5Cf. BETHTEL, GUI, La sorcière et l’Occident, Paris, Ed. Plon, 1997, citado pela revista La Vie, 2734. 22/01/ 1998, pp. 55- 57.
6Cf. KUHN, ULRICH, Salvação, in LOSSKY, NICOLAS e outros, organizadores, Dicionário do Movimento Ecumênico, Petrópolis, Vozes, 2005, p. 992.
7ELLACURÍA, IGNACIO, Conversión de la Iglesia al Reino de Dios, Santander, Ed. Sal Terrae, 1984, p. 196- 197.
8Cf. TAMEZ, ELSA, Contra toda condena. La justificación por la fe desde los excluídos, San José, DEI & SEBILA, 1991.
9Cf. JOSÉ MARIA VIGIL, organizador, COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL DA ASETT, Descer da cruz os pobres, São Paulo, Ed. Paulinas, 2007.
10DUSSEL, E. , Historia general de la Iglesia en América Latina, 1/ 1, Introducción general, Sigueme, Salamanca, 1983, p. 153.
11– idem, p. 82.
12Cf: “Longe de Deus, a humanidade jazia, ou melhor, se revolvia nos males e se precipitava de mal em mal, toda a massa condenada do gênero humano (humani generis massa damnata)” (Ench XXVII, 8 – P.L. 40, 245).
13COMBLIN, J., O Espírito no mundo, Petrópolis, Ed. Vozes, 1978, Introdução, pp. 7-8.
14JOHNSON, ELIZABETH, Aquela que é (O mistério de Deus no trabalho teológico feminino), Petrópolis, Vozes, 1995, p. 188