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O ateísmo em conjunto com a moral e a poesia da vida

O ateísmo em conjunto com a moral e a poesia da vida

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A discussão acerca da existência ou não de Deus sempre contou com adeptos nos mais variados campos da sociedade, seja na academia, nas instituições religiosas ou simplesmente num círculo social informal. Apesar de concedermos à Nietzsche, autor da expressão “Deus está morto!”, o principal crédito por escancarar o ateísmo e sistematizá-lo a partir de sua filosofia, situada na chamada “Crise de consciência Europeia”, Georges Minois nos mostra que ideias ateias podem ser encontradas desde a Antiguidade Clássica em sua obra “História do Ateísmo”.

Argumentos de diversas áreas do conhecimento surgem para alimentar essa discussão que, muitas vezes, parece não ter fim. Porém, não iremos aqui fazer um juízo dos argumentos de cada lado nem tentar estabelecer um veredito de existência de Deus, veredito este que, aliás, muitas vezes engessam as discussões e emana um proselitismo independentemente da parte pela qual foi estabelecido. Daremos um passo adiante e aceitaremos a visão da não existência de Deus. Então, o que fazer?

Para início de conversa, como é esse Deus que acreditamos não existir? É o Deus que surge nas grandes narrativas cristãs enquanto um Pai-Todo-Poderoso-Criador-do-Céu-e-da-Terra, cujo filho morreu na cruz para salvar todos os pecados do mundo. É um Deus onisciente, onipresente, de providência e, principalmente, a quem se deve a existência e por quem se deve guiar moralmente, pois Dele vem o poder de dar ou tirar de acordo com nossas ações para com nossos “irmãos”. Apesar de alguns estudiosos religiosos afirmarem que tal visão é ultrapassada, datada do século XIX e que atualmente a visão de Deus vem se modificando diante das exigências do século XXI, não é raro encontrar tal concepção divina (de Deus pai criador) no atual cotidiano de muitos que creem.

Ora, então negando tamanha potência orientadora nas nossas vidas, podem surgir algumas questões, quais sejam: como guiar-se moralmente ou como estabelecer uma alteridade coerente, reconhecendo a diferença? É possível estabelecer o “certo” e o “errado” sem seguir os textos religiosos?

Para responder a essas indagações utilizaremos da filosofia existencial, principalmente naquilo que concerne à obra de Jean-Paul Sartre. Quando o filósofo enuncia em sua obra “O existencialismo é um humanismo” que: “a existência precede a essência”, ele nega qualquer tipo de natureza divinamente concedida que nos oriente ou que fundamente os aspectos ligados ao existir humano. A nossa “essência”, nossos valores, como nos relacionamos com nossos pares, como estabelecemos nossas possibilidades de existir nas diversas esferas sociais vai se formando a partir de nosso projeto fundamental de existência. Porém, cada escolha realizada também tem um preço, o preço da responsabilidade. Ao assumir determinada posição, agir de determinada maneira, isso é uma escolha que faço pensando em toda a humanidade. Ao escolher como me devo portar escolho, também, como quero que os outros se portem, pois a partir de mim mesmo os parâmetros de vivência são tomados. Um movimento cíclico da consciência que é afetada pela diferença do outro e retorna para mim para que eu possa modular essa relação entre subjetividades.

Logo, escolher não crer em Deus, é escolher crer no ser humano, na capacidade de reflexão, de voltar a consciência de maneira crítica a tudo aquilo que circunda a história de cada um antes de emitir juízos, executar ações que sejam coerentes com a vida em sociedade. Os dez mandamentos não precisam ser estrutura moral para aqueles que desejam sempre estar engajados na construção de um mundo mais humano. Claro que sempre há a possibilidade das religiões e, com elas, seguir diversos preceitos. Mas isso não nega a autenticidade do movimento contrário.

Não crer em Deus é ter fé: ter fé na capacidade humana de reestabelecer as condições justas de relacionamento com nossos pares, de reflexão crítica. É ter fé nos nossos próprios atos junto ao outro, e que esses atos possam nos acrescentar um sentido poético à vida e, quem sabe, até mesmo uma força para mudarmos tantos moralismos institucionalizados.

Neste sentido, muitos que não creem não o fazem justamente por achar que a mediação da moral da vida não se dá por preceitos cristãos, mas na identificação com o outro (tão necessário para a minha própria constituição) e na tomada de consciência dos “pequenos fascismos cotidianos” que oprimem tantas pessoas, independentemente do que possa ser apresentado nos textos religiosos.

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Como citamos a poética da vida acima, não negaremos aqui que haja uma certa dose de “indizível”, do “inominável” na vida. Por mais que a razão tente abarcar todos os campos de conhecimento e até mesmo estabelecer padrões de relacionamento humano, sempre nos escapa algo. Há aquele real do qual não conseguimos dizer, não conseguimos nomear, mas que nos move; uma espécie de mistério que nos assombra e, ao mesmo tempo, nos encanta. Porém, como diria Comte-Sponville, dar a isso o nome de Deus é querer padronizar e abarcar tudo o que é inabarcável. É conceituar o infinito. É anular a poesia da vida, tão vasta, em detrimento de apenas um verso. Prefiro ficar com o mistério e com todos os movimentos que ele nos faz realizar, assumindo em cada momento do existir uma característica ímpar que condiga com aquele momento da minha história.

A crueza, a gratuidade, a inefabilidade da vida existem e disso estamos cansados de saber, mas quanto mais possibilidades alcançamos para enfrentá-las, melhor.


Referências

COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2007.
MINOIS, Georges. História do Ateísmo: Os descrentes no mundo ocidental, das origens aos nossos dias. São Paulo: Unesp, 2014.
SARTRE, Jean-paul. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2016.