O racismo religioso como o excesso de noite
Pensar o racismo é considerar a existência de uma estrutura que tece, de modo profundamente violento, as nossas relações. O apego à raça está embebido pelo desejo destrutivo contra os que são marcados como os outros. A eleição do inimigo comum dialoga com a composição de uma sociedade supostamente hierarquizada. Essa adesão pela descrição subalternizante do outro — através do dispositivo racial e de tantos outros que se atravessam — circunscreve a gradação entre os sujeitos e se apoia na ilusão de um “tronco original da realidade humana”. Esse contorno político, teórico, estético e afetivo, por exemplo, atende ao que Foucault anuncia, em sua História da sexualidade I: a vontade de saber, como “biopoder”. Essa composição política que oscila entre a marcação e a morte dos que são considerados suscetíveis ao controle e ao apagamento expressa as bases refinadas de aniquilação que designam o racismo religioso.
Os nossos olhares, desde muito cedo, são forjados para enxergar as religiões de matrizes africanas de forma borrada. Esse processo é resultado do “excesso de noite” — nos termos de Achille Mbembe, em sua Crítica da razão negra —, ou seja, do processo de construção simbólico, valorativo e ativo que mantém as nossas percepções na ignorância, no desconhecimento e na absorção constante dos equívocos anunciados sobre o outro. Esse “excesso de noite” atua na promoção de narrativas que fabricam e supostamente cristalizam o lugar subalternizado dos sujeitos negros. Nesse sentido, as histórias, afetações e cosmovisões negras são, através desse imaginário político de subtração, enfraquecidas e, por consequência, alocadas no limite da relatividade e da destruição.
O caráter turvo desse processo de anunciação perversa sobre o outro é retroalimentado pelos dispositivos de poder (mídia, perspectivas religiosas hegemônicas e poderes políticos que enfraquecem a laicidade, ao flertarem com posições unilaterais de mundo, por exemplo) que intensificam os discursos de validação e de invalidação.
O silêncio e a invisibilidade impostos às religiões de matrizes africanas grifam estatutos marginalizantes. Essa delimitação é demasiadamente violenta. Nós precisamos parar de confundir silenciamento com cordialidade ou imparcialidade. A composição sórdida de um espaço monológico aparentemente permite a manifestação das vozes de todos e todas, mas, na verdade, mantém o interesse autocentrado pelo controle e, em nome dele, ratifica perspectivas de um “mundo político reduzido“, como anunciamos no livro Inflexões éticas .
Os discursos que mantêm as perspectivas hegemônicas se alimentam da neutralidade. Através desse argumento se afirma, de modo falacioso, a possibilidade de todos ocuparem as cenas políticas, como se, na vida prática, o racismo não se apresentasse como uma engrenagem que restringe a fala e a escuta. Ele, o racismo, nas suas mais variadas formas, intensifica as “máscaras de silenciamento” e de morte, para pensarmos orientados/as por Mbembe. O racismo religioso também é um impeditivo geográfico, no instante em que os sujeitos negros, os ritos afrocentrados e as vozes que reverberam a ancestralidade negra são reiteradamente lançados à margem. Aqui não há neutralidade, há perversão.
Quando os cultos, símbolos e espaços que significam as religiões de matrizes africanas são vilipendiados, se instala o que chamamos, nas lentes de uma ética inflexiva, de “poder de afonia“, isto é, o desejo pungente que emerge dos sujeitos se reconhece como norma, não só pelo silêncio do outro, mas pela sua inexpressividade.
A morte do outro, nessa cadência de arruinação, é desejada como um triunfo. Esse projeto de violação, elevado à máxima potência, alimenta o imaginário social, as cenas políticas que “autorizam” terreiros serem apedrejados, e que os símbolos, ritos e os/as candomblecistas sejam atacados/as, à luz do dia ou da noite, sem nenhum pudor ou remorso dos seus algozes. A experiência nos mostra que o racismo religioso se manifesta quando as expressões de fé e de ancestralidade negras são brutalmente atacadas e, ao invés de comoção, revolta ou incômodo, as pessoas comemoram ou se abstêm.
Essas pessoas comemoram e tencionam ritualizar um ciclo destrutivo, pois estão movidas pela lógica de colonização, em que o esfacelamento da pessoalidade, do afeto e da consciência dos sujeitos negros corresponde à eficácia do racismo, nesse caso, religioso.
Esse sujeito que se enxerga como norma se hipervaloriza. Ele, ao empreender sua força para monopolizar o mundo ao seu redor, se afasta e perde de vista o rosto, a voz e a crença do outro. Ele se desumaniza e desumaniza o sujeito que lhe escapa. No Candomblé, ao contrário, a resposta ética está na constante exigência do elo, da comunidade e da voz do outro que anuncia — através da importância da oralidade e da escuta — a transmissão e a manutenção dos saberes e das cosmovisões como elementos centrais dessa forma de (r)existir. Nessa direção, se materializa uma resposta ao individualismo e às suas crias nefastas que consomem desesperadamente qualquer sinal de diversidade.
Se o racismo religioso incide sobre nós, intensificando suas forças de aniquilação, inclusive das nossas identidades, uma reação ocorre a partir da nossa força aquilombada. De forma expressiva, nós rejeitamos o poder de afonia e nos posicionamos, a partir de uma perspectiva política exuítisca, ou seja, na reverberação do diálogo, da encruzilhada e da troca justa, pois é através desse processo que nos tornamos humanos e ratificamos a necessidade da reciprocidade em oposição ao processo destrutivo marcado pela branquitude e por um dos seus primogênitos mais diletos: o individualismo.
Professor do Departamento de Filosofia da PUC Minas. Professor da Plataforma Feminismos Plurais. Mestre em Filosofia pela FAJE. Doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas. Autor do livro Inflexões éticas. Colunista da Revista Senso. E-mail: thiagoteixeiraf@gmail.com.