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A morte e a religião

A morte e a religião

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Introdução

A pergunta que nasce espontaneamente quando estudamos as religiões é: qual a origem da religião? O que aconteceu para que o ser humano desse origem à religião? Qual a importância da morte para a origem da religião?

A morte é uma realidade que assusta, ou dá esperanças; que oprime ou faz prosseguir; que se apresenta como a grande interrogação diante da qual imagina-se, inventa-se ou  se crê em uma possível resposta. Mas apesar de tudo o que já foi dito, escrito, inventado, imaginado ou crido, é uma realidade da qual não se tem experiência absoluta e, portanto, permanece sendo um grande mistério seja para a ciência, para a filosofia, para a religião ou para qualquer outra expressão de conhecimento. E permanecendo mistério, a morte pode ter sido um dos fatos que deram origem à religião.

Perguntas sem respostas?

A resposta às perguntas acima não são fáceis, pois se tem uma história de milhões de anos no processo evolutivo, sem contar as inúmeras culturas, geografias, circunstâncias nas quais o ser humano viveu. E, como diz Eliade no livro “História das ideias e crenças religiosas”, “crenças e ideias não são fossilizáveis”, isto é, quando se encontra um esqueleto com alguns objetos colocados junto ao corpo, estes não dizem porque colocaram o corpo desse jeito, porque colocaram alguns objetos, que cantos cantaram no enterro… A arqueologia, a antropologia, a teologia, a filosofia… procurarão interpretar o seu significado.

É importante ressaltar que os documentos arqueológicos parecem apontar que a humanidade sempre procurou dar sentido, significado, direção à sua vida. De onde vim, para onde vou, qual o sentido da vida são as perguntas básicas que todos se fazem, pois ninguém consegue viver sem dar sentido à sua existência. E a religião, assim como outras instituições (família, sociedade, clã…), deve ter contribuído enormemente para a resposta das perguntas acima.

A importância da morte para a origem da religião

Mircea Eliade busca na arqueologia os documentos mais antigos e mais numerosos onde a presença da religião é bem provável. Trata-se das ossadas, ou antigos cemitérios datados de 70 a 50 mil anos antes da era comum. A crença numa vida post mortem aparece na antiguidade quando se utilizavam tinta vermelha nos enterros, que substituíam o sangue, que é símbolo de vida. A crença na imortalidade é confirmada pelas sepulturas, “de outra forma não se compreenderia o trabalho empregado para enterrar os corpos”.

A palavra cemitério não era usada na Antiguidade e não se sabe qual a palavra usada para designar o lugar onde colocavam as ossadas. A palavra cemitério, na história mais recente, quer dizer “dormitório” ou “lugar das tumbas”. Os dois significados aparecem na cultura grega e na cultura latina. Algumas expressões das religiões judaico-cristãs confirmam: “repousam os cansados” (Jó 3,11), “dormem no pó da terra” (Daniel 12,2).

Outra palavra a ser levada em conta é “inumação”, literalmente “colocar dentro da terra”, assim como “exumação” é tirar para fora da terra. Seria uma maneira de identificar a semente que é colocada na terra para depois crescer? Pode-se fazer essa pergunta, pois a inumação não aparece nos mais antigos documentos arqueológicos, ela inicia por volta de 70-50 mil anos, mas não se sabe o porquê. Anteriormente, provavelmente, os cadáveres eram deixados no local onde morriam e se tornavam alimento para os animais. Ao encontrar as ossadas reunidas em locais próximos às moradias surge a pergunta: o que levou a não mais abandonarem os cadáveres, mas a enterrá-los (inumá-los)? Seria a crença de que sua vida continuaria?

No decorrer da história veremos outros costumes: quem assistiu à série Vikings, os mortos eram colocados em um barco e queimados; entre os hindus também os cadáveres são cremados; há tradições indígenas que levam seus mortos para o alto de uma montanha ou de uma árvore; há, entre os chineses, um costume de o filho levar o pai ou mãe que está próximo da morte para uma alta montanha e deixá-lo para morrer nessa montanha; entre os egípcios os mortos eram embalsamados e temos ainda hoje múmias de 4-5000 anos em perfeito estado, sem falar das pirâmides que eram os túmulos; no Brasil, algumas tribos se alimentavam do morto como uma forma de adquirir a força e as habilidades que ele tinha…

Em todos os diferentes costumes, crenças, rito fica a pergunta: morrer é morrer?

Morrer não é morrer

Jean-Pierre Bayard escreveu um livro fascinante: “Sentido oculto dos ritos mortuários”. Ele ainda acrescenta um subtítulo: “Morrer é morrer?” O livro discorre sobre como as diferentes tradições religiões vivenciam e interpretam a morte, quais os ritos são utilizados, que atitudes os familiares e amigos tomam diante da morte de um ente querido, como se despedem do falecido…

As religiões afirmam por seus ritos, gestos, linguagem que a morte não é o ponto final – que morrer não é morrer! -, mas apenas passagem para um novo recomeço, pois há algo (alma, espírito…) no ser humano que não desaparece com a morte. Aliás, uma religião que não consegue afirmar a eternidade da vida não sobrevive.

Tudo isso pode apontar que a morte é um dos elementos centrais da origem da religião. Por isso, a morte é cercada por algumas atitudes comuns:

–  acompanhamento dos que estão próximos da morte;

– velório ou cerimônia pública onde as pessoas mais próximas possam honrar o falecido;

– exéquias: ritos e orações que tem por finalidade apresentar quem faleceu a Deus;

– condolências: sentimento demonstrado por pessoas que se compadecem da dor do outro;

– costumes quanto a roupas usadas, proibições, atitudes para superar a perda de quem faleceu;

– culto dos mortos e visita ao cemitério, etc.

 O que há depois da morte?

Se há uma crença comum de que a vida continua, há diferentes crenças sobre o como essa vida continua. Alguns exemplos:

– Alguns judeus, cristãos e muçulmanos acreditam na ressurreição, isto é, que depois da morte os que morreram serão ressuscitados por Deus, e viverão uma vida que não terá mais fim;

– Hindus, budistas, espíritas e alguns judeus acreditam na reencarnação. Para estas tradições, a vida é uma construção da perfeição espiritual ou processo de evolução. Quando alcançarem a perfeição espiritual não haverá mais reencarnação e a pessoa alcançará a libertação ou Moksha no Hinduísmo, o Nirvana no Budismo e o Paraíso no Espiritismo;

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– Em algumas tradições, quem faleceu se torna espírito que vive no ar, nas águas, na natureza;

– Nas tradições afro-brasileiras, morrer é passar para outra dimensão e permanecer junto com os outros espíritos, orixás e guias;

– Até mesmo algumas escolas filosóficas, que não acreditam na religião, podem ter uma compreensão de continuidade. Veja a frase de Epiteto, filósofo grego, que Luc Ferry nos apresenta no livro “Aprender a viver: filosofia para os novos tempos”:

As folhas caem, o figo seco substitui o figo fresco, a uva seca, o cacho maduro, eis, para ti, as palavras de mau agouro! De fato, aí só existe transformação de estados anteriores em outros; não existe destruição, mas um arranjo e uma disposição bem regulados. A emigração não é senão uma pequena mudança. A morte é uma mudança maior, mas não vai do ser atual ao não ser, e sim ao não ser do ser atual. – Então, não serei mais? – Tu não serás mais o que és, mas outra coisa da qual o mundo precisará.

Religião, moral e morte

A morte pode também ter sido um dos fatos que mais contribuiu na construção da moral, ou da indicação de quais comportamentos são bons ou maus. Algumas tradições religiosas têm entre suas crenças que o bom ou mau comportamento levará a pessoa à salvação (céu) ou à perdição (inferno), ou mesmo ao purgatório ( processo de purificação), a reencarnar para continuar o processo de aperfeiçoamento espiritual.

Os livros sagrados das religiões têm muitas imagens do que é o céu, o inferno, o purgatório. O escritor da Idade Media, Dante Alighieri, escreverá o livro “A divina comédia”, onde, de maneira muito criativa, apresentará muitas imagens de cada um desses lugares.

É importante destacar que estas crenças, imagens, costumes, dependem da fé que a pessoa tem; é a fé que levará pessoas e religiões a terem determinado comportamento e proibirem outros comportamentos.

Veja como os índios brasileiros da tribo Krikati compreendem a questão do que acontece depois da morte. O texto é extraído do livro “E Tonantzin veio morar conosco”:

Hopin, preste atenção no que vou fazer. Dizendo isso, Sol atirou um limão na água e este afundou, mas, pouco tempo depois voltou à superfície da água: assim é que deve ser: a pessoa morre, mas logo volta a viver. Lua apanhou uma pedra, atirou-a na água. Depois de muito esperar ambos perceberam que a pedra não voltaria, então Lua sentenciou: pronto, Hopin assim é que deve ser, a pessoa morre e não volta nunca mais, senão a terra não vai aguentar.

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Referências

BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários: morrer é morrer? São Paulo: Paulus, 1996.
CIMI. E Tonantzin veio morar conosco. Belém: Mensageiro, 2003.
ELIADE, Mircea. História das ideias e crenças religiosas: da idade da pedra aos mistérios de Elêusis. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos.  Rio de Janeiro: Objetiva, 2010