A quem serve o silêncio dos tambores?
O silêncio pode ser considerado, em muitos casos, um dos instrumentos mais eficazes na manutenção do poder e do controle. Silenciar, nesse sentido, indica um processo de retroalimentação das normas instituídas e que emanam daqueles que se compreendem como os únicos legitimados a dizer, a se manifestar e a ocupar, com prestígio, os espaços simbólicos e concretos.
A submissão ao silêncio nos remete imediatamente à escravidão. Uma das técnicas de dominação, subjugamento e ratificação de uma “ordem” pautada na violação tinha a máscara para tampar a boca de sujeitos negros e negras como um importante instrumento de conservação da distância entre os que detinham a voz e os que, em nome de uma realidade demasiadamente violenta, foram vetados, inclusive, da própria possibilidade de existir.
Ao submeter o outro ao silêncio o que se manifesta é um desejo perverso por sua inexpressividade. A voz dos que estão alocados à margem do centro de poder é descartável e a sua presença é esvaziada de subjetividade. O silêncio do que é forjado como o outro, no prisma do violador, indica o seu estado de objeto. O projeto de tornar sua presença reificada passa, entre outros fatores, pela alteração de sua condição de humano para uma realidade objetal e expropriada de possibilidades. O processo de silenciamento, nesse sentido, diz muito sobre a intenção normativa e violenta dos que o desejam.
No instante em que nos deparamos com situações como a que aconteceu na casa do Babalorixá Anderson Argolo de Oxalá — responsável pelo Ilê Axé Alá Obantalandê, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador — que, durante uma festa em sua casa de axé, foi surpreendido por uma abordagem policial em razão de denúncias sobre o barulho dos tambores e das cantigas utilizadas como saudação ao sagrado ancestral, percebemos a incidência de uma força reativa contra as manifestações que partem de narrativas que escapam o que é experienciado pelo sujeito norma.
O silêncio como dispositivo de poder mantém a realidade e a sua oposição orquestrada entre quem tem voz e quem não pode se manifestar, pois esse último não deve denunciar as estruturas que o agridem. Assim, como aponta Grada Kilomba em seu livro Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano a “máscara vedando a boca do sujeito negro impede-a/o de revelar tais verdades, das quais o senhor branco quer se ‘desviar’.”
O Babalorixá Anderson — como aponta Tailane Muniz em seu artigo intitulado Após notificação, líder de terreiro pede retratação: ‘Pelo respeito que o branco tem’ — afirma que os “atabaques não vão parar”, embora estejam ameaçados. Nesse prisma, o incômodo diz muito sobre a determinação dos espaços de possibilidade e isso fica claro quando percebemos que ele é seletivo, direcionado e não gera reações tão incisivas (como a intervenção direta do Estado) quando estão em outros ambientes de culto.
Os tambores, a música e a melodia perpassam toda a economia do (s) Candomblé (s), visto que esses elementos reverberam um sagrado que se movimenta e que, sobretudo no salão, se manifesta (também) a partir da dança, da cadência e da troca contínua de Axé. A musicalidade atravessa a experiência cotidiana das religiões de matrizes africanas. Das rezas ao Xirê (festa de Candomblé) é possível perceber o caráter genuinamente musical, dessas experiências.
Os tambores, responsáveis por transmitir as mensagens e as energias, da sacralidade ancestral, ratificam uma manifestação de fé, luta e resistência. Pensamos que todas as vezes que um Orixá, Nkisi ou Vodun dançam no embalo dos tambores, ali renasce a esperança de que os corpos negros possam usufruir de uma vida afirmativa, expressiva e atrelada às perspectivas de reciprocidade.
Se o tambor é tão importante para que o axé se estruture e se o axé é inegavelmente uma manifestação do corpo, da narrativa, da ancestralidade e da cosmovisão negra, faz todo sentido pensar que o silêncio dos tambores está alicerçado no interesse sistemático pelo aniquilamento da voz e da potencialidade negra.
O silêncio é imposto por meio de tecnologias de destruição. Esses mecanismos de destruição deslizam pela realidade e reverberam intolerância e violência. A intolerância — imbuída de racismo e de outros elementos de ódio — se manifesta nas condutas e nos valores explosivos e belicosos dos fundamentalistas.
A resposta à pergunta que dá título ao nosso texto é mais simples do que imaginamos, mas lança luz sobre uma questão profundamente complexa e que exige de nós uma posição antirracista: o silêncio dos tambores serve aos que desejam retroalimentar a posição de subalternidade da população negra, isto é, colocá-la “em seu devido lugar”, ou seja, no horizonte do escondimento, da desumanização e da incapacidade de expressar a sua humanidade e religiosidade, pois, para aqueles que se acham demasiadamente sujeitos, nós não podemos nos manifestar, uma vez que não somos lidos enquanto sujeitos.
É importante frisar que, embora haja esse interesse em nos silenciar, nós nos ancoramos nos que vieram antes de nós e que lutaram para que as nossas identidades, culturas, religiosidades e cosmovisões não se perdessem no projeto político de colonização e no seu caráter genocida.
O silêncio já não é mais um lugar, nós não somos vitimas absolutas, ou seja, recusamos esse estatuto de “naturalmente inclinados a violação, pois reagimos e resistimos através do toque do tambor, nas danças que contam a história das nossas deusas e deuses, nas melodias das nossas rezas e na cadência de nossa resistência que move e transforma o mundo ao nosso redor. Se o silêncio serve aos que nos querem destruídos, a nossa fala reage e reorganiza a realidade, para além dos estatutos monológicos e de sua destruição bastante refinada e desejosa do silêncio do que lhe escapa.
Professor do Departamento de Filosofia da PUC Minas. Professor da Plataforma Feminismos Plurais. Mestre em Filosofia pela FAJE. Doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas. Autor do livro Inflexões éticas. Colunista da Revista Senso. E-mail: thiagoteixeiraf@gmail.com.