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“Meus heróis morreram de overdose”… de purple grass

“Meus heróis morreram de overdose”… de purple grass

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Fiz 40 anos. Essa é uma idade desafiadora. Cheguei aos famosos “enta”. Nesse processo revi minha vida, minha geração, e não foi difícil notar como fiz parte de uma geração transicional. No último culto ecumênico que participei tive a honra de ouvir o teólogo André Musskopf trazer uma reflexão bíblica. É claro que junto com as Sagradas Escrituras, André, em seu método teológico queer, apresentou outros textos. Um deles foi a música “Ideologia”, de Cazuza. Apesar de ter cantado essa música durante a minha adolescência, quando a música foi gravada (1988), eu tinha meus nove anos. Não, eu não tinha heróis que tinham morrido de overdose. Eu não fazia parte nem sequer da geração coca-cola, que a Legião Urbana cantou um pouco antes, em 1985. Talvez eu faça parte da geração coca zero. Uma geração perdida entre o açúcar e o aspartame.

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Já bem situada entre o que nem queríamos ser e o que acabamos não sendo, me perceber quarentona me impulsiona a olhar para o passado em busca de inspiração.  Essa semana, em especial, ecoou em mim a música “Ideologia”, que Musskopf tão bem lembrou. Perdi uma heroína. Não apenas eu. Toda a Fraternidade das Igrejas da Comunidade Metropolitana. E não somente nós, mas todas aquelas que ousam se afirmar mulheres, lésbicas e cristãs. Faleceu, aos 84 anos, aos 3 de dezembro de 2019, a Reverenda Bispa Freda Smith.

Mártir e militante, Freda atuou com vigor no ativismo político por mudanças da legislação em favor das LGBTI+, principalmente no Estado da Califórnia, nos EUA. Mas, foi seu papel nas Igrejas da Comunidade Metropolitana (ICMs), a primeira igreja inclusiva do mundo, que marcou a minha vida de maneira bem concreta. Se estou hoje já aprovada para meu rito de ordenação ao cargo de clériga dessa denominação é porque Freda lutou com todas suas forças pela ordenação de mulheres, se tornando a primeira clériga das ICMs, já no início dos anos 1970. Uma de suas principais ações como clériga foi sobre o uso linguagem inclusiva do Estatuto das ICMs. Durante a Conferência Geral da denominação, em 1973, Freda parava linha por linha do texto onde aparecia apenas o pronome “ele” e apresentava uma moção para a inclusão de “ela”.

No livro “Don’t be afraid anymore” (1990), que conta a trajetória das ICMs e de seu fundador Reverendo Bispo Troy Perry, Freda narra que depois de cada moção havia uma discussão e então o voto. “Foi um processo muito lento, e eu sei que as pessoas estavam cansadas que eu continuasse fazendo aquilo, mas eu persisti”. A persistência de Freda fez dela uma das principais líderes da denominação. Ela manejava muito bem as palavras, escreveu poemas e ficou conhecida por sua pregação “Purple Grass” (literalmente, grama roxa). Segundo Kittredge Cherry (2019), a reflexão fala de uma ovelha que havia sido rejeitada pela sociedade por gostar de comer grama roxa ao invés da tradicional grama verde. Sua ideia foi expandida em livro de mesmo nome, esse escrito por Denny Hamann.

Essa heroína marcou de maneira profunda a minha história ministerial. Vislumbrar o tanto que ainda posso fazer como teóloga lésbica, faz dos meus 40 anos uma idade de muita pulsão e intensidade. A mesma intensidade com a qual Freda desejou viver – e viveu – ao afirmar: “Quando eu estiver diante de Deus no final da minha vida, espero não ter mais um talento sobrando e, assim, poder dizer: ‘usei tudo o que você me deu’.”     Sim, Reverenda Bispa Freda Smith, você usou todos os seus talentos, inclusive o de ruminar grama roxa, para que nós encontrássemos um pasto um pouco mais digerível.


Para mais informações sobre Freda ver:

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