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Religião e questões socioambientais: diálogos possíveis a partir do Sínodo para a Amazônia

Religião e questões socioambientais: diálogos possíveis a partir do Sínodo para a Amazônia

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O Sínodo para a Amazônia representa um marco importante na história da igreja católica, pois se trata de um dos poucos momentos nos quais a igreja se propôs a refletir sua atuação e estrutura a partir de um contexto específico. O caminho sinodal traçado na Amazônia, teve como característica principal uma postura de escuta das populações nativas, reconhecendo o protagonismo dos povos indígenas e comunidades tradicionais para pensar “uma igreja com rosto amazônico”, como orienta o documento preparatório para o sínodo.

Refletir sobre os novos caminhos para a igreja e para uma ecologia integral, tal qual está proposto como tema central do sínodo para a Amazônia, demanda autorreflexão eclesial e diálogo permanente com questões socioambientais contemporâneas. Esta relação se tornou mais presente no discurso católico com a Carta Encíclica Laudato Si´- sobre o cuidado da casa comum, lançada no ano de 2015.

Com a Laudato Si´ Francisco inaugura um novo tempo na história da igreja. Ao propor uma reflexão sobre ecologia, que contemple a formação humana e integral, o Papa exprime a urgente preocupação com a vida no planeta, destacando que o uso exploratório dos recursos naturais pelo atual sistema econômico tem contribuído para uma profunda crise socioambiental. O pontífice aponta que as saídas para esta crise exigem que busquemos soluções baseadas em “uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS 139).

As palavras de Francisco na Laudato Si´, seus discursos e ações em defesa da casa comum, refletem a importância de se considerar a dimensão da ecologia integral no processo de evangelização, assumindo uma postura firme ao lado dos que sofrem com os impactos da destruição, pois “evangelizar implica comprometer-se com nossos irmãos e irmãs” (Documento Preparatório, p. 26, 2018).

É importante entender que, na Amazônia, “a noção de ecologia integral é chave para responder ao desafio de cuidar da imensa riqueza de sua biodiversidade ambiental e cultural” (Documento Preparatório 50). No entanto, deve-se compreender que “a ecologia integral é mais que a mera articulação entre o social e o ambiental” (Documento Preparatório, 53), ela se configura na necessidade de promoção humana integral, no âmbito pessoal, social e ecológico.

Nesta perspectiva, pode-se dizer que evangelizar na Amazônia implica em comprometer-se com a vida dos povos locais e com o território. Este comprometimento consiste, entre outras coisas, em ser presença afetiva e efetiva no cotidiano das populações, escutando seus clamores e valorizando suas conquistas.

Sabemos que não é de hoje que a Amazônia sofre com impactos ambientais de grandes proporções, causados, sobretudo, pela manutenção de um sistema econômico exploratório com interesses puramente financeiros. Reflexos destes impactos podem ser observados no aumento do desmatamento, queimadas, extração ilegal de madeira, projetos de mineração, atividades de garimpo ilegal, avanço do agronegócio e outras iniciativas que desencadeiam conflitos e ameaçam a vida dos povos locais.

A igreja pode ser uma aliada das populações amazônicas na superação destas problemáticas, pois constituí uma importante referência de ação evangelizadora e atuação sociopolítica na região. Esta presença tem se dado por meio de comunidades, pastorais, movimentos e organismos que atuam junto da diversidade de povos da região.

Muitas das ameaças sofridas pelos povos amazônicos foram relatadas no processo das escutas do sínodo, evidenciando a necessidade de ampliar o olhar da ação evangelizadora para o cuidado com estes povos. No entanto, esta preocupação deve perpassar por um amplo diálogo com as populações e com outras instituições religiosas que podem somar esforços nesta causa.

Catolicismo e outras religiões no contexto socioambiental amazônico

Em pesquisa recente sobre catolicismo na Amazônia, em especial no Amazonas, notei a necessidade de compreender melhor a nova configuração do campo religioso brasileiro e seus reflexos na região. Muito embora a maioria da população brasileira se declare católica, os evangélicos representam o segmento religioso que mais cresceu no país nos últimos anos, inclusive na região amazônica (ANDRADE, 2019).

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos estados da região Norte do Brasil, o aumento do número de evangélicos variou de 19,8% em 2000 para 28,5% em 2010; por outro lado, o número de católicos apresentou maior redução na mesma região, caindo de 71,3% para 60,6%. Os dados apresentados pelo censo demográfico apontam para uma diminuição do número de fiéis católicos e o aumento de protestantes em todo o Brasil, o que pode indicar uma migração de cristãos da igreja católica para as diversas igrejas protestantes.

Naquele momento, minha análise buscava compreender a dimensão da devoção à Virgem Maria no contexto urbano e os números foram fundamentais para entender a influência do catolicismo na região, mesmo com a gradativa redução numérica de seus fiéis. Vale ressaltar que os números apresentados pelo IBGE consideram também pessoas pertencentes a outras religiões como as de matriz africana, espíritas etc., além daqueles que dizem não pertencer a nenhuma denominação religiosa, identificados no censo como “sem religião”.  Este cenário evidencia uma pluralidade religiosa na região, com destaque para a ascensão das igrejas evangélicas em todo o território amazônico.

Muitos estudiosos das ciências sociais têm refletido sobre as variáveis que corroboraram para a nova configuração religiosa no Brasil. Montes (1998) observa que uma destas variáveis pode ter sido a intensificação do discurso católico em defesa das causas sociais. A autora aponta que a atuação da igreja em temas e diálogos da “vida pública” do povo brasileiro, muitas vezes deixou de priorizar elementos da “vida privada” dos fiéis, em suas buscas individuais por auxílio espiritual. Esta situação colaborou para que igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais ocupassem a lacuna deixada pela igreja católica no âmbito da “vida privada” (MONTES, 1998).

A percepção de que as igrejas protestantes de vertente pentecostais e neopentecostais passaram a atender o campo da individualidade dos fiéis, enquanto a igreja católica direcionava seu olhar para questões macro da realidade sociopolítica brasileira, é reforçada quando observamos o contexto histórico da presença do catolicismo na região.

Nas décadas de 70 e 80 as Comunidades Eclesiais de Base (CEBS), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Conselho Indigenista Missionário (CIMI) tiveram atuação significativa junto aos povos amazônicos, intensificando a presença da ação evangelizadora católica no cotidiano das populações. Naquele período, o Brasil passava por uma ditatura militar, evidenciando a necessidade de ampliar a reflexão sobre direitos humanos e sociais no país.

Outra importante frente de atuação sociopolítica da igreja católica tem se dado por meio das pastorais sociais. Estas pastorais direcionam suas ações para públicos específicos como crianças, jovens, mulheres, povos indígenas, população carcerária, migrantes, entre outros. Tanto os organismos como as pastorais sociais, enfrentam diversos conflitos em seus campos de atuação, sobretudo pelas críticas a ineficiência do Estado brasileiro no exercício de suas obrigações constitucionais.

No entendimento católico, o processo de atuação e reflexão social está intimamente ligado as ações evangelizadoras. O que antes era conhecido como “questões sociais”, passou a ser incorporado a uma única dimensão “socioambiental”, tendo em vista a promoção da ecologia integral.

É neste cenário de constantes transformações sociais, políticas e religiosas que o sínodo para a Amazônia se insere. O contexto religioso plural e diversificado observado na Amazônia esteve entre os principais temas refletidos no sínodo, pois a presença de diferentes igrejas cristãs e de outras religiões é um fenômeno crescente na Amazônia, situação que merece maior atenção por parte de religiosos e pesquisadores.

A atuação religiosa, através dos meios de comunicação de massa, envio de missionários, construção de igrejas e formação de lideranças locais, coloca as igrejas protestantes como uma importante força na região. Estas ações ocorrem em um campo de relações interétnicas historicamente conflituosas, ressignificadas na contemporaneidade sob novas formas de relações socioambientais.

Portanto, o sínodo constitui um dos caminhos possíveis para ampliar o diálogo ecumênico e inter-religioso, considerando a pluralidade étnica e cultural dos povos da Amazônia e suas relações com a casa comum.


Referências

Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral. Instrumentum Laboris – Documentos da Igreja 55. Brasília/DF: Edições CNBB, 2019.
ANDRADE, Rodrigo Fadul. Festas e devoções religiosas em Manaus, Itacoatiara e Manacapuru, Amazonas: catolicismo popular e vida urbana. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus/AM, 2019.
Documento preparatório para o sínodo Amazônia: novos caminhos para a igreja e para uma ecologia integral. Comissão Episcopal para a Amazônia / Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM/Brasil. Brasília/DF: Edições CNBB, 2018.
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si´ – sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Editora Paulinas, 2015.
MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In SCHWARCZ, Lílian K.M. (Org.). História da vida privada no Brasil, vol.4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.