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Entre a crença e a violação

Entre a crença e a violação

Flickr: Marysol*

As alianças acompanham os processos pelos quais nos tornamos humanos. É possível dizer que a nossa humanidade é fruto da repetição, da constituição discursiva e valorativa que, aos poucos, dão forma à nossa realidade. Pensar os movimentos que nos tornam humanos é, sem dúvida, perceber que a nossa vida está diretamente ligada à construção de um lugar comum, político, cultural, estético e normativo, por exemplo. Nesse horizonte, a dimensão da vida e da morte se configuram no tópos do encontro e da construção do que é reconhecível enquanto vida.

Pensar a aliança é, de modo profundo, considerar os lugares-comuns onde nos tornamos reconhecíveis e que, ao mesmo tempo, nos fazem experimentar os lugares de partilha. Traçar alianças é considerar, de modo explícito ou implícito, os pares, isto é, aquele que merecem compor o nosso enquadramento de percepção e de apreensão. Sendo assim, os pactos se reforçam numa economia política de proteção dos que, de modo contínuo, são captados pelos nossos olhares como possíveis, legítimos e normatizados.

A aliança, nesse prisma, nos torna humanos e, ao mesmo tempo, cria — quando centralizada no valor da identidade — os efeitos de exceção. Essa identidade é constituída pela norma e, ao mesmo tempo, faz com que ela se torne o que é incorporado como desejado, respeitado e aprovado. O indesejado é constituído às margens das alianças que, em nome de um processo de humanização, configura, a partir do desejo pelas identidades, os efeitos de desumanidades.

Os laços que nós estabelecemos são efeitos expressivos dos valores de humanidade (ou desumanidade) que partilhamos. Conceber, considerar e reconhecer o outro é possível a partir de duas estruturas iniciais: a) ele, o outro, está no lugar do perceptível, do humano e da vida; b) a relação com o outro pode manifestar uma distância constituída nas tessituras e contextos de exclusão e de esvanecimento do que é lido enquanto vida.

O olhar marcado pelo valor da identidade é acompanhado por processos abruptos de restrição e de violência. Esses processos são reiterados e criam efeitos de naturalidade e de necessidade. Segundo Byung-Chul Han, no seu texto intitulado Topologia da violência, tanto “a violência estrutural quanto a violência simbólica necessitam da relação de dominação, das classes antagônicas e hierárquicas. Elas são exercidas pelas classes dominantes sobre as dominadas”. Nesse sentido, a aliança passa a ser um lugar de reconhecimento entre os pares e, mais, de marcação dos que são “destinados” à violência.  No seu sentido nuclear, a violência diz respeito às ações de brutalidade e de ultraje em relação ao outro.

Os atos de violência forjam o nós em oposição aos outros. A crença, de modo contínuo, tem se tornado um pacto, uma aliança que, de modo controverso e turvo em seus sentidos originais, sinaliza o outro fora dos contratos de reconhecimento. As insígnias, as crenças e os elementos constitutivos da identidade dos outros causam, aos que desejam ardentemente a permanência, a continuidade e a organização do mundo sem fissuras e quebras dos discursos hegemônicos, um mal-estar. Esse incômodo surge no instante em que a aliança — nesse lugar restritivo — reitera uma percepção do mundo que não permite a manifestação da divergência. Essa linearidade impede corpos, crenças e as cosmovisões de ocupar o lugar do cognoscível.

A construção do outro à margem da aliança entre os pares — fora dos limites do humano — aparece quando esses laços são restritivos e seguros de que o espaço político se forja na desumanização contínua da exceção. Aliás, é possível dizer que um novo pacto surge nessa dicção e ele tem como fio condutor um elemento crucial: a violência. A violação do outro, nessa visão distorcida de “encontro” tem se tornado uma organização bélica do mundo. A crença autocentrada — expressão aguda do sujeito norma — gera um lastro de destruição, no instante em que se sustenta na supressão do outro. Essa crença forja uma atmosfera do medo e da manifestação da morte.

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Lembremos da marcação no corpo da menina carioca de 11 anos. Ela foi apedrejada por ser candomblecista, em junho de 2015. O seu ataque foi orquestrado por um grupo de fundamentalistas, por pessoas que a estigmatizaram com palavras e com pedras.

A sensação de morte foi narrada pela criança em várias entrevistas. A iminente perda da vida, nesse sentido, é apresentada como um elo — de destruição — construído para tecer a relação entre os sujeitos versus os que não são compreendidos enquanto existentes. A relativização da vida é anunciada como um pressuposto de apagamento que desliza pela realidade social. Enquanto estrutura, o apagamento aparece como esse modelo ideológico de putrefação do outro. Esse desejo pela aniquilação do outro, entre outros efeitos, faz com que os “grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática”, como aponta Silvio de Almeida em sua obra Racismo estrutural.

Só é possível pensar a decomposição dessa oposição entre o sujeito e aquele forjado como o outro, bem como do laço banhado a sangue que ela promove, através da crítica aos pactos narcísicos que reforçam os valores de continuidade que se estruturam no sujeito norma e na sua perversidade latente, eficaz nas técnicas de destruição — silenciosas ou não — e desejosa de um espaço político, econômico, estético, afetivo e de crença que se module na restrição. Retomar a perspectiva da aliança e do seu processo humanizador exige de nós esforço, isto é, nos tensiona a consolidar uma posição de enfraquecimento da perspectiva que lê o outro como inimigo e, por fim, que reforce a possibilidade de elos que hipervalorizem o encontro que, com sabemos, só acontece através dos olhares que se cruzam longe da supressão da vida do outro.