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Inclusive na Igreja: cenário eclesiológico LGBTI+ no Brasil

Inclusive na Igreja: cenário eclesiológico LGBTI+ no Brasil

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Em tempos de invisibilização e de silenciamento das vozes que ecoam dos espaços de resistência, este texto surgiu como uma tentativa de dar voz e de fazer ouvido a situação das igrejas inclusivas no Brasil, mapeando suas origens, tentando entender quais são as narrativas teológicas trazidas por elas e como elas se desenvolvem nas suas práticas pastorais e em seus trabalhos de base.

Foto: Neal Jennings

Este trabalho é, antes de tudo, um esforço em apresentar uma contra-narrativa sobre o que se entende como discurso teológico evangélico e possibilitar o surgimento de uma nova abordagem sobre o que se entende como boa nova do Evangelho de Cristo. As igrejas inclusivas no Brasil são um importante espaço de acolhimento a toda a comunidade LGBTI (Lésbicas, Gays, Travestis, Transsexuais e Intersexuais), que sofre violência e opressão justamente por conta do poder que o discurso religioso tem nos âmbitos familiar, social, político e psicoemocional.

A partir dessa intenção, o que esse estudo pretende analisar, também, é sobre como existem diferentes abordagens teológicas dentro do campo das igrejas consideradas ‘inclusivas’ e a partir disso objetiva-se realizar uma importante classificação sobre os perfis diferentes de igrejas desse setor evangélico que acolhem e afirmam a identidade LGBTI+.

Reconhecer que o campo e o setor de igrejas inclusivas são heterogêneos e diversos também é um importante passo para a compreensão de que existem várias abordagens distintas que ecoam uma teologia de acolhimento e afirmação desse setor da sociedade que é historicamente violentado, oprimido e marginalizado.

CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO E CULTURAL

Refletir sobre o saber e o fazer teológico no Brasil é um ato que transpõe a esfera da religião. Falar sobre o discurso religioso no Brasil é falar sobre política, economia, arte, sociedade, educação e outras inúmeras áreas da vida em comunidade que interseccionam o recorte religioso e a visão de fé das pessoas. A vivência da religião saiu da esfera privada e particular de quem a vive e como vive, e passou a ter uma incidência pública nas decisões políticas, haja visto, por exemplo, que a Ministra de Mulheres, Família e Direitos Humanos do governo do presidente Jair Bolsonaro, Damares Alves, recebe também o título e é nacionalmente reconhecida como pastora evangélica.

Em uma de suas pregações no púlpito da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte/MG uma de suas falas foi: “é o momento de a igreja governar”, e embora essa fala emblemática num púlpito tão representativo e simbólico quanto o desta igreja mereça um trabalho de pesquisa e análise por si só, aqui serve para explicitar o quão importante, do ponto de vista político e social, a discussão sobre a vivência de fé se faz no país, que a despeito de qualquer realidade, se apresenta e se constitui como um Estado laico.

MOVIMENTO EVANGÉLICO

O movimento protestante e evangélico tornou-se heterogêneo e difuso em si mesmo. Apesar de ter como raiz e origem histórica a reforma protestante e a ruptura com a igreja romana, atualmente as igrejas evangélicas possuem dogmas e doutrinas que são contraditórias e controversas entre as instituições. O código doutrinário, que nem sempre é sistematizado em todas as igrejas evangélicas, não é o mesmo. Há igrejas que ordenam mulheres ao ministério sacerdotal, há igrejas que não ordenam a nenhum cargo que seja. Há igrejas que praticam o batismo por imersão em adultos, enquanto outras reiteram que o batismo deve ser feito durante a infância enquanto a criança é bebê e por aí se seguem as muitas divergências entre doutrinas, práticas e experiências de fé de igrejas evangélicas.

O que é comum na massiva maioria de igrejas é a construção de uma teologia estruturalista baseada no controle e no disciplinamento dos corpos, que afirma uma moral que reprime o exercício pleno da liberdade do corpo em suas possibilidades de afeto e troca. Há um discurso sobre o corpo que é repressor não porque não se fala sobre ele, muito pelo contrário, fala-se bastante sobre corporeidade e sexualidade, porém, com uma narrativa carregada de noções como promiscuidade, pecado, imoralidade e são essas noções que geram um patrulhamento comunitário sobre quais os exercícios de corporeidade exercidos pela sociedade.

HISTÓRIA DO MOVIMENTO LGBTI+ CRISTÃO

É a partir dessa compreensão de um novo fazer e saber teológico que surgem as igrejas que ressignificam a questão LGBTI+ para si. Quando essas igrejas reivindicam o Cristo como possibilidade de espiritualidade para a população LGBTI+, essas igrejas cometem uma transgressão que e isso é um ato político, não apenas no campo do discurso e da narrativa, mas no campo da possibilidade comunitária. Existe um caráter social e até mesmo territorial produzindo novas espacialidades do sagrado e um discurso religioso dinâmico. Existem comunidades que ressignificam o entendimento de Cristo e que afirmam a partir dEle um discurso de inclusão de quem é excluído por esse mesmo Cristo, segundo tradição da grande maioria das comunidades evangélicas. Com uma forte atividade pastoral no tratamento de feridas emocionais e de aceitação de uma espiritualidade que não se contrapõe com as dimensões da identidade (seja de gênero ou sexualidade), essas comunidades pregam um Cristo de amor e graça irrestrito.

PERFIL DAS IGREJAS INCLUSIVAS NO BRASIL

Ao longo de 50 anos, o movimento teológico inclusivo deu origem a diversas denominações que possuem essa agenda e como todos os movimentos históricos, acabou criando uma gama de organizações que são distintas entre si e que possuem perspectivas diferentes sobre o tema da inclusão e da diversidade, mesmo dentro da discussão da inclusão existem várias nuances a serem consideradas e temas a serem debatidos.

A seguir, apresentaremos os principais perfis de igrejas inclusivas, ou igrejas LGBTI+ que existem no Brasil:

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  • Igreja inclusiva de acolhimento restrito: Igrejas em que a população diversa poderá frequentar livremente as reuniões e talvez até ajudar em algumas funções específicas, como multimídia, ou funções operacionais, mas não serão dadas oportunidades de fala e confiados cargos de liderança representativa. Geralmente, a população LGBTI que frequenta esses espaços são pessoas que só querem ter um momento pessoal de vivência de espiritualidade, mas que não têm desejo de exercer seus dons e ministérios. Alguns movimentos de igrejas históricas e reformadas têm trilhado esse caminho como um indício de uma possível abertura para a inclusão irrestrita.
  • Igreja inclusiva de acolhimento irrestrito: São igrejas que, como o nome diz, têm acolhimento irrestrito. Pessoas diversas podem ocupar qualquer cargo, pregar, ministrar louvor e todas as funções que pessoas no padrão cis-hétero podem exercer. Não são igrejas exclusivas ao público LGBTI+ e por isso não serão igrejas que terão um perfil de militância LGBTI muito forte, ou ao menos, não exclusivo. São marcadamente igrejas de cunho e pautas progressistas, com lideranças geralmente ligadas a movimentos sociais e políticos. No Brasil, os grandes exemplos desse movimento são a Igreja Batista do Pinheiro em Alagoas, a Igreja do Armazém em Curitiba e a Igreja Episcopal Anglicana de uma forma geral. Há também novas comunidades seguindo esse formato como a Igreja Batista do Caminho no Rio de Janeiro.
  • Igreja inclusiva normativa pentecostal: São igrejas com um perfil bem exclusivo LGBTI, ou, na sua maioria, LGB. Têm cultos e reuniões com fortes marcas do movimento pentecostal, como oração em línguas, unção com óleo e demais características. São igrejas com fortes restrições no exercício da sexualidade e liberdade dos corpos, com fortes discursos e pregações contra a promiscuidade. Valorizam bastante lideranças e hierarquias e geralmente têm apelos financeiros como as igrejas pentecostais de uma forma geral possuem. É como uma “Assembleia de Deus” para gays e lésbicas e basicamente em todo o domingo a pregação vai ser voltada para esse público, o que dificulta a permanência de outro perfil de pessoas que não as diversas.
  • Igreja inclusiva normativa tradicional: Assim como as normativas pentecostais, as igrejas tradicionais possuem muitas restrições sobre os corpos. Aquele bom e velho discurso de “não é porque eu sou gay que eu sou promíscuo”. Orar para namorar e casar, sexo só depois do casamento e distância da vida noturna que a cena LGBTI urbana oferece. O que diferencia das pentecostais é que essas igrejas têm um perfil mais contemplativo e introspectivo; Valorizam reuniões de estudos bíblicos, oração e devocional. Têm menos apelo financeiro que as igrejas normativas pentecostais, mas também valorizam muito lideranças e hierarquias.
  • Igreja afirmativa de radical inclusão: O maior exemplo de igreja afirmativa é a primeira igreja inclusiva do mundo e a vanguarda do movimento dessa abordagem teológica, que é a Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), a quem todo o movimento cristão inclusivo tem uma eterna dívida de gratidão histórica e de honra. Precursora do movimento inclusivo cristão no mundo, a ICM é uma igreja afirmativa, atuante e militante no movimento LGBTI, absorvendo e incluindo pautas como os direitos sexuais e reprodutivos dos corpos com útero e novos formatos de família como relacionamentos poliamorosos. Hoje em dia, existem outras igrejas que seguem o modelo da ICM, mas vale muito a pena conferir mais sobre a história da igreja, que emana diretamente do lendário e emblemático momento marcante para toda a comunidade que é a revolta de Stonewall, em Nova York.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os esforços deste trabalho se concentram em tornar visíveis as possibilidades de exercício de espiritualidade e prática de fé das pessoas diversas em suas comunidades sejam elas quais forem. A situação das igrejas inclusivas no Brasil não é homogênea e nem reflete uma única forma de pensar a fé e os desafios de ser igreja. Existem características de divergência, inclusive no conceito do que é ser uma comunidade inclusiva. O que é comum em todas essas comunidades é uma leitura inclusiva do texto bíblico que diz:

Pois estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, 39 nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor (ROMANOS 8:38).

Que a trajetória dos corpos seja uma trajetória em busca do encontro consigo mesmo e que esse encontro, mesmo que num caminho de dor e angústia, seja um encontro para a liberdade e a plenitude, porque “foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão.” (GÁLATAS 5:1). Este trabalho, embora simples e pequeno, é reflexo de anos de resistência de corpos que entendem que o simples fato de existirem já é uma dádiva divina e um ato de revolução.

Espera-se contribuir com o debate sobre diversidade, religião e incidência pública da fé cristã.


Referências

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