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Projeto Giras Decoloniais na Jurema: cosmopolítica, fé e lutas na América Latina

Projeto Giras Decoloniais na Jurema: cosmopolítica, fé e lutas na América Latina

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Eu nunca havia pisado em Recife antes de 2011 quando, logo de seis anos de viver no pesado e gelado clima britânico, decidi me mudar para a tropical capital pernambucana, rodeada de rios e abraçada pelo oceano. Embora tenha nascido no Brasil, o país que eu conhecia até então era apenas o do Sul, região onde se instalou minha família centro-americana em diáspora das guerras civis locais nos anos 1970-80, e foi a minha experiência própria como migrante laboral no Norte global que me permitiu descobrir e imergir em outros climas e cosmovisões do Brasil.

Uma dessas descobertas em Recife foi a de que anualmente, todo 16 de julho, a cidade se veste de amarelo. Ou pelo menos a maioria dos praticantes do catolicismo, como parte das celebrações à padroeira da cidade, Nossa Senhora do Carmo. Candomblecistas, especialmente aqueles ligados à tradição Nagô, também assim se vestem de nesse dia, mas para homenagear outra entidade feminina, Oxum, cuja cor também é o amarelo.

Contudo, Alexandre L’ Omi L’ Odò, tenha Oxum como sua iyá ori (mãe de cabeça), ele prefere não fazer parte desse “show de fé”, como define. Sacerdote da Jurema, ele critica o discurso sincretista alegando sua instrumentalização para a hegemonia da cultura branca, que cria obstáculos para as etnias negro-indígenas brasileiras gerarem consciência e voz própria.

O sincretismo religioso, tal como interpretado durante o período da escravidão em todo o Brasil, foi a forma que as comunidades negras escravizadas usaram para confundir seus algozes e assim manterem vivo o culto de suas entidades africanas ancestrais. Ao ajoelharem diante da imagem de um santo católico rezando em seus próprios idiomas estavam na verdade adorando orixás, voduns, inkises, e com isso foi possível manter presente sua fé original. Dado que esse tipo de estratégia hoje não é necessária, o povo de terreiro tem mais a ganhar ao liberar-se desse discurso, que acaba por gerar silenciamento e esquecimento de culturas ancestrais não-brancas.

Acompanhando o trabalho de L’Omi L’ Odò através de entrevistas e participação nos eventos que organiza há vários anos, em uma dessas oportunidades lhe fiz a seguinte pergunta: Como os elementos de nossas práticas ritualísticas são, ou podem ser, refletidos em nossas mobilizações políticas em processos de escala, e em nossa vida comunitária, que afetam diretamente o nosso cotidiano social? Sua resposta foi ao ponto:

Acredito que a falta de enraizamento com a ancestralidade negro-indígena das pessoas que fazem movimentos sociais prejudica bastante o bom andamento de mobilizações e diminui o potencial coletivo dos grupos e instituições da sociedade civil, no campo da luta política e social. Observo que as ideias marxistas ainda permeiam muito fortemente o pensamento das pessoas que fazem movimento social. Esse pensamento, que em partes é muito louvável, distancia as pessoas das religiões tradicionais. Isso causa um efeito muito ruim em diversos sentidos. Um desse é o que se torna um paradoxo: fazer luta de base com comunidades, e desconsiderar o que há de mais resiliente e representativo como expressão simbólica de luta: as religiões de terreiro.

Giras Decoloniais: um projeto de reflexão/ação cosmopolítica a partir de um terreiro de Jurema

Nessas primeiras décadas do século XXI os povos de terreiro do Brasil têm visto e enfrentado uma crescente agressão e disputa intestina com uma multidão de pregadores neopentecostais ultraconservadores. A reputação internacional brasileira como o país da tolerância e da diversidade é minada e desafiada por esses ‘pastores’ cada vez mais fortes politicamente que demonstram possuir grande influência no Congresso Nacional, e na vida cotidiana de um sem-número de comunidades periféricas urbanas e rurais em todo o país Conduzem exorcismos de homossexuais e instigam seus fieis a crer que as religiões de matriz africana são trabalho de Satanás. Durante muito tempo tais práticas e retóricas não foram tomadas a sério no país, e avançaram lentamente. Apenas em tempos recentes essas forças politico-religiosas demonstraram e revelaram o real tamanho e perigo de seu alcance e capacidade discriminatória.

É nessa conjuntura brasileira, que também é triste e gravemente compartilhada em vários outros territórios latino-americanos, que o projeto ‘Giras Decoloniais’ cobra especial importância. Potente e original, a iniciativa foi lançada em fevereiro de 2019 por  L’Omi L’Odò, que também é licenciado em historia e mestre em ciências da religião, com objetivo de formar pessoas de terreiro e público em geral interessados num processo epistemológico livre das algemas brancas do pensamento ocidental, contribuindo para a eliminação do racismo e da intolerância religiosa na sociedade.

Trocas de saberes são realizadas através da tradição oral e de uma bibliografia densa de perspectivas e conteúdos afroamerindios, num encontro inédito entre autores e temáticas de matriz africana e matriz centro-americana, trazendo para o centro dos debates o que existe de mais sofisticado nas discussões teóricas negro-indígenas na América Latina, incluindo oficinas de percussão e de língua yorùbá, e literatura maya-quiché. Sacerdotes/sacerdotisas da Jurema que atuam também como professores tanto em escolas quanto em universidades são convidados a compartilhar seus conhecimentos e aprender. Os encontros são mensais, mas atividades extras são programadas e ocorrem no espaço sagrado do terreiro ‘Casas das Matas do Reis Malunguinho’ no Sítio Histórico de Olinda-PE, como um caminho pedagógico para reconectar nossas cabeças e corpos a uma metodologia decolonial, que visa, a partir do chão de areia batida, ao ar livre e em contato com a força da Jurema e da natureza em geral, fazer com que a construção do pensamento dos participantes possa se “empretecer” e “indigenecer” de dentro da tradição pra fora, para o mundo quadrado das salas de aula dos brancos. O conteúdo programático de cada mês será disponibilizado nas redes sociais da Casa (www.facebook.com/casademalunguinho/) e da plataforma centro-americanista ‘O Istmo’ (www.facebook.com/geac.ufpe/). A implementação de transmissões ao vivo pela internet também via redes sociais estão sendo estudadas para permitir um alcance ainda maior do projeto.

Uma apreensão da ideia de ‘cosmopolítica’, que nos convida a pensar sobre outras possíveis ordens sociopolíticas frequentemente invisíveis ou depreciadas, distintas a do ocidental Estado-nação liberal, é chave. Em função do meu trabalho e trajetória de vida, tive a oportunidade de acompanhar em primeira mão uma variedade de rituais afro-brasileiros e maya-centroamericanos que foram gatilho de reflexões comparadas e problematizações em teoria social e politica em relação a esse conceito.

Para o filósofo Gustavo Fontes a cosmopolítica enfrenta a cosmovisão ocidental de unificação do mundo a partir da ciência moderna, criticando, ao fim e ao cabo, o ideário de paz universal kantiana, representado na ideia de cosmopolitismo. Parte do projeto iluminista, o cosmopolitismo – em contraste a atualidade da ideia de cosmopolítica – tinha implícito a imposição de uma identidade e de uma centralidade única de poder. Em tal razão transcendente, todo o divergente é visto como particular e/ou exótico.

O reconhecimento do poder epistemológico presente nas culturas de nossa variedade de povos é urgente para que possa ir além da ideia de ‘desenvolvimento’ e alcançar instituições políticas de novo tipo, nas quais a divisão entre natureza e sociedade não é nem óbvia nem desejada.

O desenvolvimento é um conceito cada vez mais central e em disputa nas análises e propostas sociopolíticas na América Latina hoje. Na opinião do economista e politico equatoriano Alberto Acosta, um dos grandes debatedores da noção de ‘bem viver’ (que se opõe frontalmente a toda e qualquer adaptação ao conceito de desenvolvimento como parâmetro de bem estar social) ‘desenvolvimento’ esteve presente no vocabulário de governos de diferentes cores e tendências durante todo o século XX: ou seja, tanto em países centrais do capitalismo quanto em experiências socialistas, como um objetivo inquestionável. Com os chamados ‘governos progressistas’ latino-americanos no começo deste século XXI o problema se repetiu; em lugar de buscar outras formas de organização social e práticas políticas, aprofundaram o modelo extrativista de dependência econômica de recursos naturais, na maior parte das vezes sob o custo de identidades e culturas de povos tradicionais.

Na América Central em específico, que no Brasil é uma região tão desconhecida quanto fascinante, suas características sociopolíticas tem estado historicamente distinguidas pelas percepções das ambições do capital e de potências estrangeiras sobre sua localização geoestratégica. Isto é, a de ser um istmo geográfico, que conecta os oceanos Atlântico e Pacífico e por isso permite o fluxo do comércio global; uma ‘condição ístmica’ que encarna uma paradoxal maldição por fazer da região um destino permanente de projetos geopolíticos extrativistas.

Nessa região, mulheres intelectuais indígenas que vêm de territórios inseridos no Estado-nação da Guatemala, como Gladys Tzul, têm sem destacado pelo chamamento a reflexão a diferentes sentidos de política: uma coletiva-comunitária, e não uma liberal-republicana, que destaca as lutas que ocorrem entre formas indígenas de governo local e a autoridade do Estado. Na sua elaboração o poder político do aparato estatal é nada mais que o de uma classe privilegiada que quer regular a vida social a partir de um marco mercadológico, negando a pluralidade de povos nos diferentes territórios de cada Estado-nação (no caso do seu trabalho especificamente, Totonicapán, na Guatemala) outras formas de conduzir-se politicamente. Tzul fala da relevância da condição comunitária para a reprodução da existência social naquele país centro-americano. Tais reflexões se apresentam como o motor de uma perspectiva comunitária naquele país centro-americano com potência para alcançar o mesmo objetivo em qualquer outro lugar, ou seja, a capacidade de erodir material e simbolicamente a hegemonia do Estado-nação e do capital.

Como foco na crítica ao Estado-nação moderno, em meu trabalho como pesquisador e organizador politico-cultural tenho assumido o termo ‘cosmopolítica’ como o resultado da relação entre dois outros fundamentais conceitos: ecologia politica e virada decolonial.  Isto é, advogo pela compreensão da cosmopolítica como a síntese do estudo das relações de poder que conduzem a problemas de apropriação dos recursos naturais –tal como define o sociólogo Hector Alimonda – com o reconhecimento da existência e relevância da colonialidad do ser/poder/saber, tal como elaborado por nomes fundamentais do pensamento social latino-americano como Anibal Quijano e Walter Mignolo.

Sob essa acepção é fundamental para o debate tomar em conta as pluralidades étnicas que, com suas respectivas particularidades históricas e cosmogênicas, incidem ou podem incidir – por sua capacidade de gerar reflexão para o desenvolvimento de novas categorias analíticas sobre formas de organização sociopolítica – em múltiplas visões sobre o significado de Estado e de outras categorias políticas que enfrentam estratégias, muitas vezes veladas, de supremacia branca.

O tema da apropriação/reapropriação social da natureza, nas palavras dos geógrafos Carlos Walter Porto-Gonçalves e Pedro Quental-Araújo, é a linha-de-força que atravessa essa discussão que, inserida no grande debate sobre desenvolvimento, cada vez encontra menos condições de ignorar a questão territorial. Povos originários, camponeses, quilombolas, e povos de terreiro são exemplos de desterritorializados que, em suas lutas por reterritorialização, invocam a essa linha como o eixo vertebrador de uma reivindicação por reconhecimento de direitos e diversidade de formas de organização sociopolítica, e assim expandem o debate para além do marco binário entre desenvolvimento/subdesenvolvimento.

O projeto ‘Giras Decoloniais’ faz parte dessas lutas, unido à trajetória resiliente da Jurema, para manter-se viva e fora do risco de extinção.