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Mestre Zé Pilintra – breves reflexões catimbozeiras

Mestre Zé Pilintra – breves reflexões catimbozeiras

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Quando finalmente conheci a cidade de Olinda, a expectativa tão antiga quanto os meus, até então, 27 anos de vida se transmutou em incompreensível fascínio. Talvez pela belezura dos paralelepípedos das estreitas ruas junto aos sobrados tombados que denunciam, com charme, a arquitetura colonial tipicamente portuguesa. Ou, vai ver, por conta dos estandartes dos frevos e das calungas dos maracatus que, durante o carnaval, colorem ainda mais uma paisagem já tingida dia-a-dia pelas nuances de azul, celeste e também marinho. Subi a ladeira que separa a beira do Beberibe do Centro Histórico, cruzando a sede da prefeitura, além dos Quatro Cantos, até chegar ao Largo do Amparo.

Bati na porta do número escrito no endereço que tinha em mãos (340). Quem abriu foi L’Omi. Depois dos cumprimentos e das trocas de algumas impressões sobre a viagem, ele me mostrou a Casa das Matas de Reis Malunguinho, onde habita. Trata-se de um imóvel cumprido e estreito, com uma pequena sala, logo de frente, dois dormitórios na sequência de um corredor, cujo fim se dá numa copa, que bifurca em cozinha e banheiro. Atrás, um hall e uma escada descendente, que cai num fundo de quintal enorme, coberto quase que completamente pela vegetação. Alguns troncos de madeira, dispostos por ali mesmo, servem de assento para que nós dois travemos um diálogo profundo sobre a Jurema Sagrada e todo universo afroindígena dentro da qual ela existe.

Qual não foi minha surpresa ao ser informado de que, debaixo daquele chão, houvera um cemitério de escravizados, bem diante da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Agora começava a compreender o tal sentimento transcendental, desde que ali pus os pés. Estava no terreiro de catimbó por basicamente dois motivos, não necessariamente nesta ordem: a pesquisa de campo para tese de doutorado e a busca pela conexão com a minha ancestralidade. Academicamente, meu “objeto”, ou melhor, sujeito de estudo era o mestre Zé Pelintra. Todavia, devido à forte emoção descrita, L’Omi sugeriu que esta relação com Zé também fosse espiritual. E a tese, mero pretexto.

O pré-texto do “pretexto” estava sendo escrito na mente via experiência sensorial e história oral por parte da comunidade litúrgica. Embora a identidade “juremeira”/ “catimbozeira” contenha enunciados complexos, atrelados à carga pejorativa construída, ao longo do tempo, pelo racismo estrutural da sociedade brasileira, a prática religiosa em questão parece ser hegemônica na região metropolitana do Recife e adjacências1Ver detalhes na dissertação de mestrado em Ciências da Religião de L’ODÒ (2017).. Assim, mesmo que o povo-de-santo preferira se definir como “umbandista”, em favor de uma suposta legitimidade superior perante o conjunto social, este tipo de comunidade abrange um contingente populacional poroso e diversificado. Por isso, senti a necessidade de retornar à Olinda o quanto antes, para assistir ao culto em uma data apropriada e conversar com outros integrantes da casa. Nos momentos antecedentes à despedida momentânea, L’Omi, em mim, soprou a fumaça do cachimbo, trepidou o maracá e proferiu certos dizeres em tupi. Saí de lá levando comigo toda força das matas!

No mês seguinte, consegui cumprir a promessa interna. Embarcara, desta vez, do Rio de Janeiro com o propósito de permanecer uma semana inteira dentro do terreiro. Haveria justamente a festa ao mestre Zé Pelintra, ocasião na qual eu solicitaria os “direitos autorais” para falar em nome dele. Definitivamente, não era simples sujeito, muito menos “objeto” de pesquisa, mas o co-autor de um trabalho intelectual formal. Formal porque está restrito à produção literária segundo o modus operandi universitário, meio de transmissão de conhecimento que, a meu ver, não é superior à de outros meios, inclusive ao produzido no e através do próprio terreiro. Logo, as Ciências da Jurema são tão ou mais elaboradas intelectualmente quanto às Ciências Modernas convencionais. Há aí um repertório inesgotável de inquietações sobre a condição humana de existência.

Para ficar apenas na filosofia, é possível vislumbrar caminhos alternativos para ontologia, epistemologia e metodologia a partir da sabedoria contida na raiz do catimbó.

Por exemplo, o perspectivismo ameríndio2Ver mais em “A inconstância da alma selvagem”, de Eduardo Viveiro de Castro (2002). coloca o ser no mesmo patamar hierárquico em relação aos demais animais e ao Reino Plantae. O antropocentrismo, aqui, não faz o menor sentido. Da mesma forma que o conhecimento sobre o conhecimento passa por instâncias desprestigiadas pelo padrão clássico eurocêntrico, como o corpo, haja vista a etapa da juremação para um iniciado, quando este tem implantado em seu corpo uma determinada semente. Isto tudo, inevitavelmente, repercute na forma de se interagir com o meio, muito além da razão lógico-instrumental.

Portanto, eu estava precisando do aval definitivo de Zé Pelintra. Recolhi-me durante a preparação do rito, em que se faz necessário resguardo por dias. Num destes, L’Omi me chamou ao único cômodo que faltava narrar, localizado embaixo da escada. Ali é um aposento estritamente religioso, com altares sobre os quais entidades imagens dividem espaço com velas acesas e muitos copos, conhecidos como príncipes, fora outros apetrechos sagrados. Ele acendeu cachimbo, sacudiu o chocalho e concentrou-se.

De repente, baixa Malunguinho, autoridade máxima da Jurema Sagrada. Chamado de Reis, no plural mesmo, rompe não só com a singularidade, mas com as fronteiras das atribuições específicas ao ser símbolo coletivo e concomitante, também, de trunqueiro, caboclo e mestre. Ou seja, a onipresença arquetípica lhe exige reverência.

Ele vem para dar seu recado sobre os preparativos e aproveita para falar de Zé. Confirma que o co-autor acadêmico é meu mestre espiritual e que a relação entre a gente teve origem nas antigas. Logo, “objeto”, sujeito, co-autor, e, agora, orientador! Pelintra trabalharia somente desta maneira, sem haver a necessidade de incorporação. No catimbó, ao contrário das linhas da umbanda, os mestres não são falangeiros. Funciona, a grosso modo, assim: se um mestre se encontra aqui, logo não ele está acolá. São espíritos únicos, exclusivos. Não há mais de um Zé Pelintra. É só o próprio e ponto.

Minha impressão, diante de Malunguinho, era estar em outro espaço e tempo, mais precisamente no quinhentista Quilombo de Catucá3Quilombo que margeava a fronteira agrícola da zona da mata norte pernambucana e começava nos limites do Beberibe, Recife. Seu apogeu aconteceu entre os anos de 1817 e 1835., cujo líder foi justamente ele. Para ser mais exato, o termo M’alungu, que no idioma Quicongo é “companheiro”, designava o cargo de liderança do quilombo, assim como Zumbi em relação a Palmares. Este Malunguinho foi um daqueles, razão pela qual recebe no catimbó o título de Reis. Contara a mim L’Omi que este era brabíssimo, a ponto de deixar a elite canavieira de Olinda e Recife deveras amedrontada pela violência com que ele liquidava os inimigos. Acabaria sendo capturado e degolado. Mesmo agora, enquanto entidade, o aspecto bélico ainda estava presente em seu discurso, tal quando se referiu aos inimigos atuais como insetos que deveriam ser pisoteados. Sua voz grave intensificava o caráter atemorizante.

“Tá com medo, nego?”: a primeira coisa que ele havia dito a mim, brincando. Talvez porque realmente estivesse assim. Findado o contato, com L’Omi “de volta”, passei a investigar o contexto que naturalizava aquela retórica alheia ao meu cotidiano. Basicamente, o senso de justiça social está na base da divinização juremeira de mestres. Eles foram e são reconhecidos pelo povo nordestino como exímios heróis da raça. Muitos, inclusive, deram a vida para lutar contra o extermínio de pretos e pardos pobres.

É o caso de mestre Zé Pelintra. Reza a lenda popular4Ver mais em “Zé Pelintra e Eu” (1980), de Edwin Barbosa da Silva, o Pai Edu. O livro está acessível no Palácio de Iemanjá (Olinda) que tratou-se de um negro arruaceiro radicado na zona meretrícia do Recife Antigo, no início do século passado. Fez fama na Rua da Guia e adjacências por não levar desaforo e desafiar os abusadores de prostitutas, entre golpes de capoeira e perfurações epidérmicas, através de peixeiradas.

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Zé também teve o destino trágico, apunhalado pelas costas, durante emboscada. Tornar-se-ia, porém, um ser extravivente, de tanto ser invocado, como espírito protetor.   O processo de encantamento, espécie de “mestrado” espiritual a um bem feitor do povo, contém em seu cerne um pensamento absolutamente genial, tipicamente afro-indígena: a morte não se dá com a sucumbência do corpo físico, mas quando existe esquecimento.

Se o binômio vida-morte consegue ser relativizado com tamanha sofisticação, maniqueísmo cristão algum resistiria à juremeira cosmovisão. Os conceitos bem e mal como categorias absolutas e opostas sequer são levados a sério, devido ao anacronismo. O que se transmite são valores vinculados à responsabilização total de ações virtuosas ou negativas, partindo da premissa de que qualquer desequilíbrio em relação às forças da natureza e ao corpo social traz consequências a quem o praticou. Nada ou ninguém tem o poder de fazer mal a não ser apenas a si próprio. Logo, o mal está endócrino. Quem sofreu, mas não mereceu, há de ser recompensado, sem a necessidade de milagre.

A ética inseparável da busca pelo equilíbrio rejeita qualquer ortodoxia moralista. Entidade ali nenhuma é santo, nem tem a pretensão de sê-lo. Basta ser agente regulador. Aquele que gerou prejuízo que repare o dano ou se prepare para receber a conta, totalmente zerada de pecado original. Por isso, Malunguinho & companhia falam assim.

Demorou bastante tempo, observação direta e diálogo para eu sacar esta lógica. A caranguejada a Zé Pelintra, da qual tive a honra de participar como seu “orientando”, ao longo de todas as etapas, ofereceu uma oportunidade ímpar de erudição intelectual, organicamente enraizada no solo fértil do Nordeste, colhida e partilhada em abundância.

A plenitude da Natureza, a da Terra e a do mundo íntimo, é a teologia da Jurema. Mas enquanto houver desarmonia, luta do povo catimbozeiro não vai parar. Trunfá Riá! Sob a fumaça de Zé, em breve termino esse texto sobre esse tão importante mestre da Jurema e divindade na umbanda.


Notas

  • 1
  • 2
    Ver mais em “A inconstância da alma selvagem”, de Eduardo Viveiro de Castro (2002).
  • 3
    Quilombo que margeava a fronteira agrícola da zona da mata norte pernambucana e começava nos limites do Beberibe, Recife. Seu apogeu aconteceu entre os anos de 1817 e 1835.
  • 4
    Ver mais em “Zé Pelintra e Eu” (1980), de Edwin Barbosa da Silva, o Pai Edu. O livro está acessível no Palácio de Iemanjá (Olinda)