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A Jurema Sagrada e a decolonização do saber

A Jurema Sagrada e a decolonização do saber

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As veredas que me conduziram até à Jurema Sagrada exigiram responsabilidade e coragem. Responsabilidade para lidar com a manutenção de uma tradição ancestral cujas origens remontam às praticas indígenas, sobretudo dos Tabajaras e Potiguaras que habitavam o litoral dos estados que hoje conhecemos por Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Essa tradição recebeu influências de outras práticas religiosas afro-ameríndias como a Umbanda e o Candomblé, e até de versões mais populares do catolicismo como as práticas de reza, produção de unguentos e benzeduras.

Minha sensação de pertencimento era por mim mesmo recorrentemente questionada; quando somos muito jovens e adentramos os lugares de conexão com o sagrado buscamos explicações para absolutamente tudo e essa sede de entendimento pode dificultar o já difícil exercício de dar um passo de cada vez; em paralelo a essa vivência me dediquei ao estudo da Jurema Sagrada ou do Catimbó, cujos poucos escritos tratavam como sinônimos. As pesquisas se dedicavam ao entendimento das dinâmicas sociais dos terreiros; a como as identidades dos grupos são construídas e como as tradições se modificam no contato umas com as outras. Os estudos e vivências nessa tradição me fizeram perceber que nem todos os contatos entre religiões tão hibridizadas como a Jurema se dão em termos de acréscimo ou perda, os elementos são recorrentemente elaborados fazendo da Jurema uma prática multável que já não mais se assemelha aos rituais dos antigos indígenas, mas que também não deixa de compreender que foi com eles que tudo começou.

Em uma conversa com a Juremeira Mãe Carminha de Oyá (uma das mais antigas sacerdotisas da cidade de Campina Grande-PB) recordo o fervor com que ela me disse: “meu filho, você pode passar mil anos dentro da Jurema que ainda não vai saber de tudo, a Jurema é uma ciência profunda e cheia de mistérios, quando os mestres vêm à terra eles trazem a mensagem do mundo dos encantos e pra receber ela você precisa tá de coração aberto, mesmo que seja o homem mais sabido e rico do mundo”.

As palavras da sacerdotisa logo me fizeram refletir sobre a concepção de ciência recorrentemente acionada nesses espaços. “Ciência é dom divino”; “Ciência de cura”; “Ciência encantada” e outras expressões apontam para uma espécie de conjunto de saberes ancestrais ligados ao bem viver, à saúde, aos mistérios transcendentes que o decorrer de uma trajetória de mais de cinquenta anos como a da referida sacerdotisa não consegue comportar. Mãe Carminha, reconhecida pelos demais praticantes como uma Juremeira forte de muita ciência reconhece que tem muito a agradecer e aprender ainda com seu Zé dos Anjos – seu mestre de Jurema.

Mãe Carminha, Juremeira e Iyalorixá se reporta ao Candomblé para explicar o que significa a ciência encantada do catimbó: “– É assim, no Candomblé, a gente cultua mais a parte do santo, num sabe? O Orixá, eles são as forças das pedras, das plantas, dos ventos e da natureza, estão acima de nós e acima dos espírito, é como se fosse superior, e os espírito, esses que a gente chama nas mesas, nas macumba de chão são abaixo deles e acima de nós, cada espírito tem uma história, seu Zé mesmo tem a história dele, seu Mestre, seu Caboclo; cada um tem sua história e a ciência é aquilo que eles deixam pra nós, pra nos ensinar. Na mesa, seu Zé trabalha com água limpa e uma vela porque isso é a ciência dele, você tá me entendendo? Já o Orixá não fala, ele vem na terra, dança, abraça, faz algum gesto assim, mas como são acima de tudo, são a lei, eles num passam essa ciência pra gente não.”

Estabelecendo uma diferenciação e uma hierarquia comum aos terreiros que são de Candomblé e Jurema Sagrada simultaneamente, mãe Carminha elucida que essas tradições estabelecem relações diretas uma com a outra e recorre a cada uma em momento específico sem confundi-las. As “casas traçadas”, assim como são reconhecidas na cidade os terreiros com essas características, costumam organizar seus calendários cerimoniais para que ambos os cultos sejam contemplados.

A sacerdotisa também alerta que a ciência da Jurema tem se perdido, e o que parecia ser graças ao contato com outras tradições como o Candomblé, está mais associado no entendimento dela às vaidades humanas; às “adequações” que não estão voltadas às realidades históricas, mas ao direcionamento que os sacerdotes dão ao culto de forma individual e conveniente desconsiderando saberes que são compartilhados e a própria noção coletiva de tradição.

Essa ciência a qual ela se reporta está associada aos lugares de produção de saber recorrentemente desconsiderados ou colocados em questão pelo empirismo que os marcam. A ciência Ocidental e sua insistência na noção de prova, de objetividade ou de universalização da verdade, entretanto, não têm desconsiderando por completo essas práticas, mantêm um tipo de contato com essas que (não menos violento) resguarda à Jurema Sagrada o lugar da abjeção, do místico, da credulidade sem fundamento que precisa ser investigada e apropriada aos cânones da ciência tradicional para que apresente alguma finalidade.

Se faz necessário refletir a partir dos saberes e práticas ancestrais como processos de “investigação”, produção e aplicação do conhecimento se articulam em experiências que postulam outras relações com a natureza e com os sujeitos, e que, por isso, são mirados e desqualificados pela normatização epistemológica sobrevivente nos processos de colonialidade do saber, demonstrados amplamente por Boaventura de Sousa Santos, Edgardo Lander, Aníbal Quijano, Ramón Grosfoguel entre outras e outros.

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A Jurema Sagrada está dotada de um complexo conjunto de princípios, valores e condutas que não recorre a padrões dicotômicos fixos de cultura e natureza, natural e sobrenatural, bem e mal, masculino e feminino etc. postulados pela tradição dita ocidental e pelas religiões que com ela mantém contato ou compartilham determinados princípios. a Jurema Sagrada se apresenta para nós como uma potente provocação para pensarmos as nossas estratégias de produção do conhecimento e de atuação sociopolítica, por meio de uma reorganização epistemológica de nossas bases de compreensão do mundo.

Quando analisamos os sistemáticos ataques aos terreiros de Jurema, sejam eles de ordem física, psicológica ou moral torna-se visível as acusações de charlatanismo, de apropriação inadequada da credulidade pública ou as cruzadas contra os sacrifícios de animais. Todos esses motivos estão relacionados aos saberes ancestrais que o Catimbó produz e perpetua. Suas formas de compreender a relação entre o homem e natureza da qual este deriva, distancia-se da tradição judaico-cristã, por exemplo, aonde os indivíduos forjados como imagem e semelhança da própria deidade da criação ocupam lugar central perante as demais instâncias do universo, o que pode naturalizar a crença da sua soberania a as violências dessa crença subjacentes.

Na América do Sul, e notadamente no Brasil, herdamos modelos de compreensão da sociedade e da organização política pautados em uma crítica que foi elaborada dentro dos mesmos regimes de verdade que supostamente buscava desestabilizar. Por essa razão, tem sido urgente uma virada em direção à epistemologia como garantia de que, apesar de termos há muito compreendido como se processa a engrenagem da dominação que atua por meio do controle epistêmico, estamos hoje em condições de avançar para o estabelecimento de nossas próprias produções e legitimações dos saberes. Nossa aposta é que esses podem encontrados sobremaneira em saberes que foram ditos mágicos e insuficientes, resguardos na memória pessoal e coletiva da ancestralidade.

Me reporto a essa prática, aos lugares sagrados que ela me conecta e compreendo, a partir do diálogo livremente estabelecido entre mãe Carminha e as provocações decoloniais, que a potência da ancestralidade perpassa o cotidiano dos terreiros. Pisar descalço em terras sagradas, concentrar no pensamento enquanto balança a maraca ou esguichar a cachaça, apagar a vela ou acender o cachimbo entre outras práticas cotidianas do universo da Jurema Sagrada permite o alinhamento com forças supremas e saberes recusados. Na crítica dos métodos e da erudição ditos superiores ou clássicos, percebendo o que nos fixa e conecta à terra, uma outra ciência se cria, uma ciência encantada.