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Teologias da Libertação no século XXI

Teologias da Libertação no século XXI

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As Dores de parto da Libertação

Onde tu dizes lei,
Eu digo Deus.
Onde tu dizes paz, justiça, amor,
Eu digo Deus!
Onde tu dizes Deus,
Eu digo liberdade,
Justiça,
Amor!  (Dom Pedro Casaldáliga)

Na América Latina, quando alguém pergunta como está a Teologia da Libertação é comum que eu e outros irmãos e irmãs, inseridos nesse caminho, respondamos:

– Mais importante do que a Teologia da Libertação é o próprio processo de libertação. Dom Pedro Casaldáliga afirma: “Enquanto houver pessoas sendo oprimidas e enquanto houver Teologia cristã, haverá Teologia da Libertação”.

Em seu diário nos anos 70, ele traduz esse pensamento de outra forma ao revelar a resistência do povo que sofre. Ele escreve:

A teimosia popular é um manancial de energias de sobrevivência. Ou, quem sabe, seria melhor dizer que é o instinto de sobrevivência o manancial da teimosia do povo” (Casaldáliga, 1978, p. 109).

Sem essa imensa capacidade de resistir e sobreviver, não seria possível pensar a longa história de movimentos de resistência e tentativas de libertação ocorridos na América Latina e Caribe. Nessa longa história de resistências e de luta, sempre existiu uma espiritualidade libertadora no continente, embora nem sempre explicitamente ligada à fé cristã. Desde séculos, muitos homens e mulheres lutaram nos combates por libertação. Eles e elas lutaram por uma energia de amor revolucionário que existia dentro deles, mas não sabiam ligar isso com a fé. E como as Igrejas (Católicas e evangélicas) eram conservadoras e do lado do poder, muitos eram rebeldes e lutavam por ideais libertários, apesar de ser cristãos e não porque eram cristãos. Na resistência dos índios e dos negros, houve muitos movimentos de luta pela libertação e pelos direitos dos povos. Era mais fácil ligar esses movimentos com a espiritualidade indígena ou negra, embora também não houvesse uma teologia da libertação indígena ou negra. O que aconteceu a partir dos anos 70 foi que teólogos/as  e pastores sentiram a necessidade de elaborar uma teologia que respondesse aos apelos de muitos irmãos e irmãs na fé que participavam de movimentos de libertação.

1 – As raízes de uma espiritualidade libertadora.

Ainda no começo do século XX, no Peru, em um ensaio escrito em 1925, José Carlos Mariátegui, grande filósofo e pensador latino-americano, escreveu: “A inteligência burguesa ocupa-se com uma crítica racionalista do método, da teoria, da estratégia dos revolucionários. Que mal-entendido! A força dos revolucionários não está na sua ciência, mas na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística espiritual… A emoção revolucionária… é uma emoção religiosa. As motivações religiosas se deslocaram do céu para a terra. Elas não são divinas, mas humanas e sociais” (Mariategui, 1970, p. 22).

Mariátegui desenvolveu esta tese a partir da análise das sociedades peruanas e latino-americanas. Ele sabia que, na história do nosso continente, os grandes movimentos populares de insurreição contra a tirania e de mais justiça e igualdade para comunidades indígenas ou camponesas, sempre começaram ou vinham entrelaçados de motivações espirituais. Na América Latina, a maioria dos movimentos revolucionários, como o do Tupaq Amaru ou a Confederação do Equador, em Pernambuco, tinha a participação de padres e muitos crentes. Foi a fé e a mística de transformar o mundo que levou camponeses do Nordeste a se unir no movimento de Canudos e enfrentar o exército brasileiro na primeira guerra civil em que o governo brasileiro usou canhões contra o seu próprio povo (1986) e depois na Fazenda Caldeirão no sertão do Ceará no começo do século XX. Também no começo do século XX, no sul do Brasil, na Guerra do Contestado de 1912 a 1916, camponeses liderados pelo Beato João Maria (até hoje venerado na Lapa, SC) enfrentaram as forças capitalistas que vinham tomar as terras do povo em nome do progresso.

Esta dimensão religiosa popular pode ser ambígua (por exemplo, milenarista e não histórica), mas, se os movimentos revolucionários canalizam esta força de forma histórica e mais lúcida, sem dúvida, isso será uma contribuição nova para as mudanças sociais.

Ninguém de nós veria a ação do Espírito em guerras sagradas, de direita ou de esquerda. Talvez pudéssemos dizer que o sinal da ação do Espírito em qualquer movimento revolucionário está no esforço de criar uma maior humanização da vida.

O cardeal Walter Kasper afirma: “Sempre que brota algo de novo, ali há uma manifestação da atividade do Espírito”(Kasper, 1997, p. 227).  Como não ver o Espírito dando força às pessoas que até hoje procuram por parentes desaparecidos no Chile e por movimentos como o das Mães e mesmo das Avós da Plaza de Mayo na Argentina?

Nas últimas décadas, a partir da ressurgência indígena em Chiapas e da articulação dos movimentos indígenas em todo o continente, a revalorização das religiões ancestrais suscitou a retomada e releitura de importantes elementos de resistência social e política. Assim, por exemplo, os povos andinos e outros redescobriram o paradigma do bem viver, presente nas cosmovisões de vários povos indígenas de todo o continente e que hoje se tornou um programa continental proposto como objetivo do Estado no caminho da construção da “revolução indígena” na Bolívia e do “bolivarianismo” na Venezuela. Em todo esse caminho, podemos ver um sinal da iluminação do Espírito Mãe. Ela fez esses povos não apenas revalorizarem suas tradições religiosas antigas, mas retomarem uma vitalidade nova em um renovado protagonismo social e político.

No belo livro “A queda do céu”, Davi Kopenawa, Xamã do povo Ianomami, mostra que, depois de um contato e até inserção na sociedade branca, ele foi resgatado para o seu povo e voltou à sua identidade indígena e a uma missão de resistência. A caminhada de libertação dele e do seu povo Yanomami se dá a partir da escuta de uma palavra ou chamado de Oumana, o Espírito Supremo.

2 – A mística libertadora nos movimentos sociais

 O padre José Comblin explicava: “A sociedade latino-americana é uma sociedade desintegrada. A maioria dos habitantes das cidades fica alheia a qualquer associação. O desemprego, as condições de vida difíceis e o ambiente hostil das periferias urbanas dificulta muito qualquer projeto comunitário. O êxodo permanente de pessoas, troca de moradias, tudo isso torna difícil a experiência das comunidades. Por isso, conseguir firmar uma comunidade de vida e de convivência é um verdadeiro milagre. É um acontecimento espiritual. Só mesmo uma ação especial de Deus que acompanha o seu povo pode tornar isso possível. É uma experiência quase extática, ainda que vivida no dia a dia e com serenidade. A comunidade é experiência de partilha. Compartilha a palavra, compartilha bens, compartilha o agir social e político, consegue às vezes até levar adiante uma ação pública em conjunto. É uma manifestação forte do Espírito Santo”1COMBLIN,  J., O Espírito Santo e a Libertação, Vozes, 1987, p. 47..

Atualmente, nas periferias das cidades, marcadas pela violência urbana e por fenômenos cxomo o desemprego e o tráfico de drogas, é impressionante como ainda os grupos conseguem se reunir. Uns grupos se juntam para cuidar de um rio poluído ou de uma natureza ameaçada. Outros se unem para orar em comunidades pentecostais. Alguns formam círculos bíblicos ou comunidades eclesiais de base. Outros se unem nos cultos afrodescendentes. Todos esses fatores de comunhão são os únicos fatores de humanização. Ajudam as pessoas a manterem a consciência de sua dignidade. Nelas, o Espírito de Deus se manifesta de formas diversas, seja nos transes pentecostais, seja na escuta da Palavra da Libertação nos círculos bíblicos e comunidades da caminhada, seja nas manifestações cultuais dos diversos Orixás, Inquices ou Caboclos. Todas essas formas revelam o que Paulo chama de “frutos do Espírito” (Cf. Rm 8, 6; Gl 5, 22 e Ef 5, 9).

Nas últimas décadas, na América Latina, uma das mais fortes expressões do Espírito Santo foi o desenvolvimento de uma pastoral indígena e afro que não só respeita, como valoriza espiritualmente as culturas e religiões originais. Não fazem isso apenas como método de diálogo ou abordagem pastoral e sim como caminho místico. Muitas pessoas que, com sinceridade e profundidade se inserem nas comunidades religiosas de matriz africana e em grupos indígenas descobrem manifestações do Espírito Divino que, embora não saibam explicar, as conduzem para um caminho novo de integração e unidade.

3 – Sinais de vitalidade e renovação nas Teologias da Libertação

Desde que Gustavo Gutierrez escreveu o livro “Teologia da Libertação”(1971) até hoje, esse modo de fazer teologia se espalhou não só pelo continente latino-americano, mas por todo o mundo. Nos anos 80, enfrentou a perseguição do Vaticano e por isso a marginalização na Igreja Católica oficial. Os papas João Paulo II e Bento XVI perseguiram e reprimiram violentamente toda e qualquer teologia séria e que se propusesse a pensar com mais liberdade. Não era preciso ser Teologia da Libertação. Entre 1980 e 2005, quase 200 teólogos de todo o mundo sofreram restrições, alguns foram silenciados, outros foram condenados e muitos se sentiram perseguidos. Então, a pergunta que se poderia fazer à Igreja Católica é, se depois de 35 anos da dominação desses dois papas, não é se a Teologia da Libertação morreu. A questão é se ainda resta Teologia livre que não seja apenas repetição do que o papa diz. E a resposta está clara no fato de que, nas últimas décadas, mais ainda do que nos anos 70 e 80, se desenvolveram no mundo inteiro, associações teológicas e abundam congressos e encontros de diálogo e de estudos sobre Teologia da Libertação. Toda vez que se reúne o Fórum Social Mundial, tem se reunido também o Fórum Mundial de Teologia da Libertação (FMTL) que já teve quase dez sessões em diversos continentes e que depois de cada sessão tem publicado um livro coletivo com as contribuições e debates da sessão passada. Na América Latina, a Ameríndia tem feito congressos e encontros de estudo quase a cada ano e no Brasil há várias organizações teológicas abertas e promissoras. Então, embora menos reconhecidas as teologias da libertação estão vivas e vão bem, obrigado. Talvez por causa da repressão que sofremos por anos e anos, mais ainda pelo fato de que até hoje, não encontramos muita acolhida nas dioceses e paróquias, o nome Teologia da Libertação não é uma marca com a qual se carimbe cada livro e artigo publicado, mas podemos ver que o espírito e a preocupação de muitos autores e autoras é essa.

Se um sinal de vitalidade for o número de publicações, podemos dizer que os livros publicados atualmente na América Latina e especificamente no Brasil nessa linha libertadora não diminuiu e ao contrário, tem aumentado em relação aos anos 70 e 80. Uma diferença é que ao invés de serem obras de grandes nomes (Leonardo Boff, Gustavo Gutierrez, Jon Sobrino, etc), são obras coletivas e feitas em mutirão.

Quando falo em teologias da libertação é porque, cada vez mais, elas têm se diversificado em teologias negras, teologias índias, teologias feministas, teologias gay e queer, ecoteologias e assim por diante. Nas últimas décadas temos desenvolvido teologias decoloniais e pós-coloniais, teologias do processo e outros nomes, mas com essa direção ou rumo da libertação.

4 – Desafios e questões a responder  

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 Provavelmente, a questão mais fundamental nos dias atuais não é se a teologia da libertação morreu ou está viva e sim se ela cumpre a sua função de apoiar e fundamentar uma caminhada libertadora dos grupos e comunidades. Dito de outra forma: se as atuais teologias da libertação continuam fieis ao seu primeiro amor , ou seja, à suas intuições fundamentais de quando começou (nos anos 70).

O mundo mudou muito. A realidade no Brasil e na América Latina também. E as Igrejas cristãs também.

Em relação às primeiras fases da Teologia da Libertação as atuais teologias que são abertas e em uma linha libertadora são mais do que antes, ecumênicas, pluralistas e mais abrangentes como Teologias da Vida. Se antes a preocupação era quase exclusivamente social e política, agora, sem deixar essa dimensão fundamental a TL se preocupa com o corpo, a sexualidade como campo de liberdade humana, com a natureza em sua sacralidade, enfim, com a Vida em todas as suas dimensões.

Não sabemos se a Teologia da Libertação poderia ter surgido em outro lugar da terra. Embora outros continentes também tenham sido e até hoje são vítimas do colonialismo e das conquistas violentas, as Teologias da Libertação nasceram na América Latina e no Caribe. Surgiram a partir das práticas das comunidades e da experiência de cristãos/ãs nos processos e nas lutas de libertação.

A caminhada do povo e suas lutas por libertação são autônomas e laicais. Não podem e não devem ser sacralizadas. Como têm repetido líderes de diversas religiões: “Não existe guerra santa”. Nenhuma guerra é justificável. No entanto, é direito dos povos oprimidos reagir e lutar pela liberdade e pela vida que lhes é negada. Esse direito é reconhecido pela ONU na Carta dos Direitos Humanos e a fé judaico-cristã vê nele uma resposta ao chamado divino para transformar o mundo e construir ressurreição no lugar de opressão e de morte.

Por isso, a caminhada do povo em busca de libertação é assunto de fé. É tema teologal e teológico. Por isso, sim, se pode afirmar que toda verdadeira Teologia cristã, de alguma forma, deve ser Teologia da Libertação. Na América Latina e atualmente em outros lugares do mundo, se desenvolvem várias correntes e escolas de Teologias da Libertação. Todas elas têm em comum o fato de surgirem como respostas à realidade que é a luta pela libertação. Todas elas, de um modo ou de outro, devem estar ligadas a essa prática.

Atualmente, por razões históricas e pelas necessidades da vida atual, muitos teólogos e teólogas que pensam a Teologia em uma perspectiva libertadora não são mais tanto ou principalmente pastores ou agentes de pastoral, como eram muitos das primeiras gerações dos teólogos da libertação. Eles sempre ensinaram em universidades e seminários, mas não era a sua ocupação fundamental. Agora para as novas gerações e para a maioria dos teólogos e teólogas que trabalham é essa realidade: dar aulas na universidade. E isso acarretam alguns desafios. Todas as vezes que a Teologia da Libertação tem sido formulada na Academia e para a Academia, nos escritórios e nas universidades, sem ser como resposta e eco direto das lutas sociais e fruto da inserção espiritual dos teólogos e das teólogas nesse processo concreto das bases, o resultado pode ser bom e útil.

Pode ser uma excelente elaboração, mas não seria tanto Teologia da Libertação no sentido de teologia pensada e aprofundada a partir da experiência de luta pacífica do povo e das comunidades (e em último caso, mesmo a luta armada2Apesar de que, sempre mais concluímos que a luta armada e a violência acaba sempre servindo aos opressores, o próprio papa Paulo VI admitia: “a insurreição revolucionária não é legítima, salvo em casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país” Populorum Progressio, n. 31.) pela libertação. Seria Teologia sobre a Libertação (ou se quiserem no plural) e não tanto Teologia da Libertação.

Sem nenhuma rigidez de cobrança ideológica ou de postura basista, é bom levarmos em conta uma distinção entre Teologia da Libertação como método e caminho teológico espiritual vindo das bases e um tipo de produção na linha da “Teologia sobre a Libertação” que pode ser igualmente útil e importante no processo3Não entramos aqui na discussão sobre a epistemologia da Teologia da Libertação no sentido discutido por Clodovis Boff (de teologia do genitivo ou Teologia 2)  ou de Jon Sobrino, como “intelligentia amoris” e tão bem sintetizada por Aquino Júnior. Ver: FRANCISCO AQUINO JÚNIOR, O caráter práxico-social da Teologia, Tópicos fundamentais da epistemologia teológica, São Paulo, Ed. Loyola, 2017..

O desafio dessas teologias atuais da Libertação é que qualquer pessoa que frequente os livros ou aulas dos/as diversos teólogos/as e ao mesmo tempo frequente as comunidades paroquiais e os ambientes das Igrejas (católicas e evangélicas), poderá perceber que há uma distância imensa, um abismo quase intransponível entre uma linguagem (a dos teólogos/as) e a forma como as comunidades e movimentos católicos e evangélicos expressam a fé. Alguns trabalhos pastorais como o CEBI (Centro Bíblico) tentam e às vezes conseguem reaproximar um pouco mais esses mundos distantes, mas de fato essa distância é um desafio imenso e o pior é que não são muitos os/as teólogos/as que se dão conta disso ou se preocupam com isso.

De uns e de outros, a realidade atual, cada vez mais dura e cruel exige profecia e algo que pode ajudar nesse diálogo entre a Teologia e a caminhada de fé é a prática de uma espiritualidade crítica e em uma linha social libertadora. É o caminho através do qual, tanto teólogos/as como todos os cristãos podem escutar “o que o Espírito diz hoje, às Igrejas” (Ap 2, 5).


Notas

  • 1
    COMBLIN,  J., O Espírito Santo e a Libertação, Vozes, 1987, p. 47.
  • 2
    Apesar de que, sempre mais concluímos que a luta armada e a violência acaba sempre servindo aos opressores, o próprio papa Paulo VI admitia: “a insurreição revolucionária não é legítima, salvo em casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país” Populorum Progressio, n. 31.
  • 3
    Não entramos aqui na discussão sobre a epistemologia da Teologia da Libertação no sentido discutido por Clodovis Boff (de teologia do genitivo ou Teologia 2)  ou de Jon Sobrino, como “intelligentia amoris” e tão bem sintetizada por Aquino Júnior. Ver: FRANCISCO AQUINO JÚNIOR, O caráter práxico-social da Teologia, Tópicos fundamentais da epistemologia teológica, São Paulo, Ed. Loyola, 2017.