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“Salve Jacira, protetora da jurema!”: caminhos sagrados dos feminismos

“Salve Jacira, protetora da jurema!”: caminhos sagrados dos feminismos

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“Salve Jacira, protetora da jurema
Jacira é uma menina,
É uma cabocla de pena”
(ponto de jurema)

Inicio este escrito feminista sagrado saudando Jacira, protetora da jurema e todas as entidades que cuidam deste sagrado caminho que nos convida a saudar e honrar o feminino em suas múltiplas faces. Neste canto ou ponto cantado de jurema, que pode ser acompanhado pelo padrão rítmico do coco, substitui-se o nome Jacira por nomes de entidades femininas e masculinas para que todas/os sejam devidamente saudadas/os, sem hierarquias de gênero.

Situando no tempo, estamos há dez anos após ter “parido” a tese sobre “As juremeiras da nação Xambá (Olinda, PE): músicas, performances, representações de feminino e relações de gênero na jurema sagrada” (2009) e ter a vida completamente transformada e atravessada pelo candomblé e pela jurema sagrada, desde 1999, quando pisei pela primeira vez no Terreiro da Nação Xambá (Olinda, PE). Ali aprendi sobre feminismos sagrados pelas lentes do feminismo negro, que, como destacam Luiza Bairros, em “Nossos feminismos revisitados” (1995), Sueli Carneiro em “Identidade feminina” e Helena Theodoro, em “Mito e espiritualidade: mulheres negras” (1996), reformula a própria história dos feminismos e das religiões através dos protagonismos das mulheres negras, caso das Iyalorixás/Mães-de-santo matriarcas deste terreiro: Maria das Dores da Silva, Maria Oyá (1900-1939) e Severina Paraíso da Silva, Mãe Biu (1915-1993) que enquanto lideranças religiosas enfrentaram as ditaduras do Estado Novo (1937-1945) e Militar (1964-1985).

Desde então, muitas “fichas” caíram sobre a minha ligação espiritual com a ancestralidade das mulheres negras e afro-indígenas, protagonistas destas religiões e as suas entidades femininas. Estas são referências heterogêneas de poder: caboclas, mestras, pretas-velhas, ciganas e pombagiras são arquétipos das meninas e indígenas anciãs, das jovens, sensuais e sexualmente experientes mestras, das vovós africanas e da “exu fêmea”, aspecto feminino da energia vibrante e, por vezes densa, do mensageiro Exu. As entidades espirituais da jurema vivem nas florestas, nas matas e no reino do Juremá, além daquelas desencarnadas que “retornam” para trabalhar espiritualmente, como parte de seu processo evolutivo.

Jurema é um termo polissêmico: o nome da árvore sagrada, a bebida sagrada, a cidade/reino dos encantados e o nome da cabocla.  Costumo dizer que aprendi no candomblé e na jurema a 1. Cromoterapia – cores diversas; 2. Gastronomia – comidas sagradas; 3. Aromaterapia – banho de folhas, perfume de alfazema, etc;  4. Fitoterapia e Farmacologia- uso das ervas; 5. Moda e estética, roupas, adereços, penteados, símbolos, decorações, etc.; 6. Dança e performances –coreografia, tipos de voz, sotaques, gestuais e corporalidades; 6. Musicologia e musicoterapia – repertório musical que pode ser individual ou coletivo formando um complexo sistema musical que narra as identidades e trajetórias materializadas pela dança e corporalidades: as meninas caboclinhas que pulam e brincam, as sensuais e poderosas mestras e pombagiras giram suas saias coloridas e/ou vermelhas, as anciãs vovós pretas-velhas se agacham no seu banquinho benzendo, rezando e defumando.

As religiões de matrizes africanas e afro-indígenas, como a jurema, são inclusivas, ou seja, não discriminam por orientação sexual, identidade de gênero ou racial. Protagonizada historicamente por mulheres negras e afro-indígenas subalternizadas pelo racismo e pelo sexismo, como a minha avó Eurídice, mulher afro-indígena de origem pobre e periférica que foi juremeira antes de se converter evangélica, é espaço onde também se encontram pessoas LGBTT. Mas a jurema também acolhe adeptas de outras identidades, como é o meu caso, de mulher lida como branca na nossa sociedade racista. Jurema é caminho de amor divino e de cura. Somente o ódio para não respeitar os caminhos de amor e de cura… que construamos dias melhores desde o amor. Salve a jurema sagrada e os sagrados feminismos da jurema com toda sua amplitude ancestral de feminino que tanto nos ensina e guia.


Referências

Bairros, Luiza. “Nossos feminismos revisitados”. In: Revista Estudos Feministas. Vol. 3, No 2, 1995. Pp. 458-463.
Carneiro, Sueli. “Identidade feminina.” In: Mulher Brasileira é assim. SAFFIOTI, Heleieth; MUÑOZ-VARGAS, Monica (orgs.) . Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994. Pp. 187-194.
Rosa, Laila. As juremeiras da nação Xambá (Olinda, PE): músicas, performances, representações de feminino e relações de gênero na jurema sagrada. Tese de (Doutorado em música – Etnomusicologia). Salvador: Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.
Theodoro, Helena. “Mito e espiritualidade: mulheres negras”. Rio de Janeiro: Pallas, 1996.