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Damares Alves: Facetas de uma mulher que reproduz os abusos dos quais foi vítima

Damares Alves: Facetas de uma mulher que reproduz os abusos dos quais foi vítima

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Damares Alves é a personalidade política da vez. A cada três dias aproximadamente, a grande mídia traz uma frase sua de destaque. Ração de memes para as mídias sociais, seu pensamento alimenta um imaginário de transmissão virtual que viraliza justamente porque se encaixa nos estereótipos, aqueles que soam caricatos, absurdos e irreais. Infelizmente, são bastante reais como forma discursiva e seguem produzindo e reproduzindo discursos excludentes, em um jogo de retroalimentação dentro de um sistema ávido por frases feitas e rápidas.

Poderíamos preencher alguns parágrafos com frases de Damares. Citamos algumas das mais emblemáticas: “menino veste azul, menina veste rosa”, “os gays querem tirar a Bíblia de circulação do Brasil”, “a Igreja vai governar a nação”, “aborto deve ser crime hediondo”, “feministas são feias e nós somos lindas”, “é como se houvesse uma guerra entre homens e mulheres no Brasil. Isso não existe”, “as mulheres nasceram para serem mães”, “costumo brincar como eu gostaria de estar em casa toda a tarde, numa rede, e meu marido ralando muito, muito, muito para me sustentar e me encher de joias e presentes. Esse seria o padrão ideal da sociedade”.

As frases que representam o lugar de fala de uma pastora são atualmente associadas a outro lugar de fala: ao da Ministra da pasta Mulher, Família e Direitos Humanos. E temos nesse ponto uma clara sobreposição de papeis entre Igreja e Estado que pode afetar as atribuições de uma parlamentar com poder de estabelecer políticas públicas para o tão controverso campo dos direitos humanos. Como alguém com esses valores pode ocupar justamente esse Ministério? Alguém contra o feminismo, o empoderamento das mulheres, o direito à escolha da mulher em não ter filhos e realizar-se plenamente independente e muitas vezes por conta dessa escolha, alguém contra as políticas que descriminalizam o aborto – tema de intensos debates mundiais caros às mulheres, alguém que não defende as pessoas homoafetivas e transgêneras como sujeitxs desprivilegiadxs que necessitam prioridades em políticas públicas, alguém desconectada dos debates mundiais sobre os temas centrais de sua pasta, alguém que chama a produção científica sobre gênero de ideologia, desqualificando a narrativa das ciências diante do grande público leigo, alguém que confunde as instâncias do público e privado, que parece não compreender os princípios da laicidade, alguém cujo projeto de governo é colocar a Igreja e seus valores no comando…

Claro que Damares está respaldada pelo time ideológico de Bolsonaro, representado por, além dela, especialmente os ministros Ernesto Araújo, Ricardo Vélez-Rodriguez e Onyx Lorenzoni (recordamos das demissões para fins de “despetização”), os filhos Eduardo, Flávio e Carlos Bolsonaro, apoiadorxs como Magno Malta (apesar da mágoa por não ter sido convidado para Ministro), Marco Feliciano e outrxs. Damares está em sua casa: a Igreja que se fez Estado ou o Estado que se fez Igreja.

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O relato de Damares de ter sofrido abuso sexual por pastores que frequentavam a casa de sua família quando criança coloca a ministra-pastora em uma posição delicada diante dos movimentos militantes feministas e de gênero. Solidárias, nós mulheres e apoiadorxs da causa de gênero nos compadecemos de sua dor e lutamos para que tal violência deixe de ocorrer, mas ao mesmo tempo lamentamos que a biografia daquela que foi abusada por pastores a tenha conduzido justamente à reprodução de discursos machistas associados à cosmovisão cristã conservadora – a mesma fórmula que levou os pastores a abusá-la no passado. Uma clara repetição e reprodução de ciclos entre vítima e algoz, que socialmente se manifesta em abuso do poder público.

É conhecido no âmbito psicológico o mecanismo cíclico e repetitivo ligado aos abusos. A menina Damares que pensou em se matar diante da violência que sofria com pastores evangélicos, acompanhada da negligência, silêncio ou conivência de sua família (seu relato não esclarece profundamente, mas indica que esteve sozinha para enfrentar os abusos), essa menina que viu Jesus na goiabeira e, de modo transferencial e projetivo, tentou aplacar a dor e o risco da queda de Jesus que já havia sofrido tanto na cruz (uma alusão ao seu próprio sofrimento e risco), tornou-se a mulher Damares que assume o lugar de pastora (o lugar de seus abusadores), ofendendo feministas por sua aparência e sua luta, negando discursivamente às mulheres o direito à emancipação social, profissional e financeira, defendendo que aborto em gestações decorrentes de estupro também seja criminalizado. A menina abusada torna-se a pastora que abusa. E cá estamos, cidadãos e cidadãs brasileirxs, vulneráveis, diante de um Estado doente e abusador, em busca de nossa goiabeira salvadora.