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Projetos de poder em nomes de Deus: a religião como cabo eleitoral

Projetos de poder em nomes de Deus: a religião como cabo eleitoral

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O nome de Deus pode dar muitos votos. É o que professam aqueles que se apoiam no discurso religioso para fazer seu tipo de política. Apoiados nas estruturas religiosas, mais que as partidárias, traçam caminhos de poder, que são balizados nas bandeiras comportamentais e morais. Essa realidade, que está fortemente presente na dinâmica eleitoral brasileira, produziu uma atuante bancada religiosa, tratada comumente como “a bancada da bíblia”.

Embora essa bancada esteja pulverizada em um grande número de partidos de centro-direita e direita, existem alguns partidos abertamente defensores de uma pauta dita cristã. É o caso do Partido Republicano Brasileiro (PRB), ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, e do Partido Social Cristão (PSC), por exemplo. Vale lembrar que, embora existam alguns católicos unidos à essas bancadas, sua grande maioria é composta por lideranças de igrejas evangélicas das mais variadas.

O acesso ao poder, embora marcado por flagrantes desrespeitos constitucionais, como o ataque ao Estado Laico, se dá de modo aberto e sem constrangimentos. Nomes fortes do campo pentecostal, como Silas Malafaia, do Ministério Vitória em Cristo, ligado à Assembleia de Deus, e Waldemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, posam ao lado de candidatos a vários cargos. Arrebanham-se eleitores nas denominações e pastores se tornam, quando não candidatos, fortes cabos eleitorais.

A arena comunicacional é central para a política. Isso quer dizer que a disputa pelo poder se dá, em grande medida, pela capacidade de utilizar os meios de comunicação e o uso estratégico das mensagens. Neste aspecto, as candidaturas ligadas à bancada da bíblia têm se especializado. Não apenas no grande aparato comunicacional de que dispõem, como o controle desmedido de horários na televisão aberta ou de emissoras – fato sustentado pela frágil legislação sobre comunicação no país.

Com força de emissão e grande audiência vem o planejamento da mensagem. O foco discursivo é fundamentado em temas de forte penetração no imaginário e com apelo moral. Fortaleceu-se a chamada defesa “da família tradicional”, usando um discurso apelativo, geralmente criando polarização aos movimentos LGBTQI. Outro ponto sustentado é o combate à “ideologia de gênero”, que é uma formulação deturpada das próprias bancadas conservadoras para impedir a discussão do respeito à diversidade, mas que penetra fortemente no senso comum.

A transmissão ao vivo de cultos dentro da Câmara Federal, a “profecia” do deputado Cabo Daciolo (Patriotas), em plena tribuna, decretando a cura da deputada Mara Gabrilli (PSDB), que é tetraplégica, são alguns dos exemplos de como política e religião têm se misturado de modo flagrante. O deputado, aliás, é candidato à presidência da república – projeto que muitos evangélicos não escondem ser o principal objetivo.

O prefeito do Rio Janeiro e bispo licenciado da Igreja Universal, Marcelo Crivella (PRB), em vídeo divulgado em 2016, afirmou: “Eu não sei se será na nossa geração, quando será, mas os evangélicos ainda vão eleger um presidente da República, que vai trabalhar por nós e nossas igrejas. E nós vamos cumprir a missão que há 2 mil anos é o maior desafio da igreja, de levar o Evangelho a todas as nações da Terra”.[1]

Tudo leva a crer que há um projeto articulado e fundamentado. A propaganda eleitoral enviesada pelo “marketing religioso”, ou seja, o uso indiscriminado do discurso da religião para a conquista de votos, serve a esse propósito. É óbvio que nada impede que líderes religiosos sejam candidatos ou atuem na vida pública, como muitos o fazem sem se ligarem ao lobby evangélico ou católico, por exemplo. O desafio que se apresenta é a confusão que se instaura no meio da frágil democracia entre o que deve ser assunto das religiões e o que deve ser interesse público. O risco de uma “teocracia” avançada ameaça as minorias, sempre atacadas no discurso “em nome de Deus”, além de fomentar a intolerância, sobretudo quando religiões de matriz africana, por exemplo, são atacadas por discursos estigmatizados sem ter espaço representativo no sistema político concentrado como o brasileiro.

A dissonância, porém, existe. Mesmo sem a mesma força comunicacional do caciquismo das grandes igrejas, padres, pastores e outras lideranças denunciam os abusos do seu próprio campo religioso. Militam politicamente sem o pragmatismo funcional da eleição como forma de sustentar uma agenda sectária. É o caso do pastor Henrique Vieira, colunista do Mídia Ninja, que denuncia a atuação da “bancada evangélica” e defende a luta pelos direitos humanos.

Estigmatizar a religião é um erro, que deve ser evitado. Portanto, identificar os núcleos que querem impor agendas contrárias ao Estado Democrático de Direito, onde a liberdade religiosa se constitui um princípio fundamental, é passo imprescindível para vencer essas células antidemocráticas. Mais que isso: o debate tem que se dar na arena comunicacional, onde a disputa de sentidos tem se mostrado favorável ao campo conservador, que se apropriou do conceito de “deus” como uma propriedade sua.

As vozes contrárias, como as de Henrique Vieira, trazem nova luz, porque mostram que ninguém é dono do divino e o marketing religioso não pode ser um instrumento de catequização e hegemonização da religião sobre a política, já tão provinciana e devota de outros deuses, como o Mercado, o Dinheiro e a Moral da hipocrisia.