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Santos pelados: de volta ao antes do pecado

Santos pelados: de volta ao antes do pecado

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Nós nos cobrimos porque estamos nus. Disse Adão. Mas quem disse que você está nu? Por acaso você comeu da árvore da qual lhe proibi comer? Disse Deus. (Gn2. Adaptado)

O intuito deste artigo, como a tentativa de ser algum ensaio, não é tanto tratar do Belo como um atributo do ser, como aprendi na velha Metafísica nas aulas do saudoso professor Luiz Gonzaga Tomasi. Não tanto quero refletir acerca de teologia moral, disciplina que, confesso, e muito disciplinar para o meu gosto. Perdoe-me, leitor, pela heresia de escrever em primeira pessoa, em um tom um tanto confessional. Este ensaio de ensaio e, todavia, uma partilha de angústia, em algum sentido, de pensamentos soltos que me veem como pensador (quanta pretensão, minha deusa, eu, pensador). Santos pelados! Como pode uma heresia dessas?

Segundo a Bíblia judaico-cristã, deus formou o ser humano da terra. O ser humano e fragilidade, boneco de barro que respira para ser gente. Talvez a arte esteja na origem da criação. Deus um artista depravado que fez um homem nu. Meu Deus, como pode isso? Um homem nu! Quanta depravação em um texto sagrado. Como vamos explicar para as crianças que Deus fez um homem nu? Se pensarmos a narrativa do livro do Gênesis (Bereshit, em hebraico: No princípio). No princípio a nudez. A originalidade da criação está na nudez do corpo. Vem-me à mente ao escrever essas primeiras linhas a música alma nua, do cantor mineiro Vander Lee: “ e se eu tiver de ficar nu, hei de envolver-me em pura poesia é dela farei minha asa, minha casa, loucura de cada dia.” Almas e corpos nus estão no princípio, quando o sonhado paraíso era posse, revestimento de poesia.

O cristianismo, um certo platonismo das massas, conforme diz Nietzsche, talvez não tenha entendido que o paraíso é corpo nu. Preferiu Platão, ao Bereshit, tratou de nos vestir, a olhar nosso corpo como algo mal, que deve ser castigado, velado para não pecar. Uma inversão de ordem. O paraíso deixou de ser a nudez criativa e criadora e passou a ser longos vestidos, paletós, chapéus e gravatas. As pessoas religiosas, cidadãs e cidadãos de bem, horrorizam-se diante da nudez artística. Uma obra de arte na qualquer, pelo simples ato de apresentar alguma nudez deve ser banida. Ora, como explicar as crianças? Melhor mesmo é não olhar o que somos disfarçar a nossa nudez de não conseguir lidar conosco mesmos. Tudo isso me remete a duas imagens. Como teólogo de formação católica não posso me furtar, ao ensaiar este ensaio, de me remeter as minhas origens, ao meu no princípio. Uma primeira imagem a qual quero me referir e a do Cristo crucificado. Ali, o homem-Deus é retratado como Adão, filho da terra (Ben Adamah) nu, desprovido dos pudores, desprovido de moral. A cena, talvez a mais trágica da tradição cristã, e de seu Deus nu, mas como explicar as crianças? Outra imagem que me toca e a do Mártir São Sebastião. Também ele atado a um madeiro, também ele nu, mas também ele com as genitálias tampadas, afinal, como vamos explicar as crianças? O mártir Jesus e o Mártir Sebastião, ou suas iconografias, talvez apontem que a nudez e o estado paradisíaco do ser humano, mas, também, que nossa tradição não consegue lidar com maturidade com aquilo que somos; um corpo que atribui significado a si.

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A arte, ao representar a nudez da santidade, talvez (perigoso talvez) nos aponte que alguma redenção não se situa em um para além deste mundo, num para além do corpo, mas no próprio corpo, em um olhar sobre nós mesmos, eivados de alguma inocência pueril. A arte, talvez, nos leve a descobrir a beleza do corpo, a beleza de desconstruir moralismos de um platonismo das massas e voltar ao paraíso, onde há o ser humano e corpo, onde o ser humano atribui significado a si, para além da moralização das genitálias, que todos têm.

Talvez, o corpo seja o que nos iguale e a iconografia ao representar os mártires nus, na situação de terem sua nudez exposta tendo em vista sua fidelidade a um pro-jeto, assinale que a salvação está no corpo, naquilo que fundamentalmente somos: mundo, parte do mundo. A arte nos recorda o paraíso: fora da nudez há salvação?