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“Muitas mulheres, acreditando que o agressor pode mudar de forma milagrosa, retomam a relação conflituosa ou nela permanecem… ”

“Muitas mulheres, acreditando que o agressor pode mudar de forma milagrosa, retomam a relação conflituosa ou nela permanecem… ”

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Entrevista com Claudia Maria Poleti Oshiro


Nesta edição, a Senso entrevistou Claudia Maria Poleti Oshiro, mestre na área da Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo (2016); Graduada em Serviço Social pela Faculdade Paulista de Serviço Social de São Caetano do Sul (1997); Assistente Social na área da Saúde; Vice-presidente da Entre Nós Assessoria, educação e pesquisa em gênero e raça; Diretora Técnica da Integrar Capacitação para o Desenvolvimento Humano e Social e membro do Grupo de Estudos de Gênero e Religião – Mandrágora/Netmal. Em 2017, realizou sua pesquisa de mestrado sobre Violência de Gênero e Religião com mulheres acolhidas nas Casas Abrigo Regional Grande ABC.

A minha prática demonstra que muitas destas mulheres buscam ajuda na religião, mais especificamente com seus líderes religiosos, que, em sua maioria, além de compactuar com a violência vivida, a reforçam através de suas crenças religiosas. Neste sentido, a minha pesquisa buscou identificar e analisar a influência do cristianismo nas relações familiares violentas de mulheres católicas e evangélicas religiosas acolhidas nas Casas Abrigo Regional Grande ABC e de autores da violência contra as mulheres dos mesmos grupos religiosos. Compreender as consequências da violência na vida dessas mulheres, bem como identificar a influência da religião no exercício masculino da agressão e na sujeição feminina à agressão, foi o ponto chave desta pesquisa.

A seguir, você confere a íntegra da entrevista:

Senso: Você poderia nos contar um pouco sobre a sua experiência como assistente social?

Cláudia: Desde adolescente desejava estudar para trabalhar com a garantia de direitos.

Realizei o curso de Serviço Social com objetivo de trabalhar diretamente com as questões sociais, afinal trabalhar com garantia de direitos num país com tantas injustiças sociais parecia não só desafiador mas motivador, no sentido de assegurar o que é de direito. A busca do “cidadão” brasileiro sempre foi algo que me moveu para além do existente, a busca de possibilidades, de construção de estratégias e desafios, é o que e me move para um longo e vasto caminho de ausências de direitos sócias e de possibilidades de cuidados, restaurações e construções.

Iniciei meu trabalho como Assistente Social numa Organização Não Governamental que trabalha com pessoas com deficiência, a CARE. O trabalho de fortalecimento com as famílias me abriu novos horizontes, no sentido de perceber o quanto estavam desprotegidas em relação à políticas públicas. Após dois anos passei a fazer parte da gestão de políticas públicas no Município de São Paulo, fui supervisora técnica na Secretaria de Assistência Social, atuei como supervisora de instituições conveniadas e me envolvi ativamente da municipalização das Medidas Sócio Educativas no município. Participar da construção de metodologias para assegurar aos adolescentes o cumprimento das medidas com dignidade foi além de apaixonante, mas  um trabalho integrador, no sentido de  perceber a importância da intersetorialidade na execução das políticas públicas. Mas, infelizmente, estávamos longe de uma proposta digna, de inclusão e de proteção social às famílias dos adolescentes que eram tão vítimas quanto algozes.

No ano de 2004, fui convidada a fazer parte da equipe que tinha como desafio pensar em metodologias e estratégias para melhorar os serviços de medidas sócio educativas de internação, numa instituição falida, altamente conservadora e nada educativa, a antiga FEBEM – Fundação Estadual do Bem Estar do Menor. Nascida sob a repressão da ditadura militar permaneceu até então com ações primitivas de torturas e maus tratos com os meninos. Como encarregada técnica e depois como diretora de unidade, foi se não o maior, foi o mais desafiador dos trabalhos que já realizei. Sabia que lidar com a violência não é nada simples, porém lidar com a violência e com um Estado de direito altamente punitivo, elevou o desafio a um novo patamar. Acredito que foi nesta época que percebi certa habilidade em lidar com situações limites como a violência: a linha entre a vida e a morte era em algumas situações muito tênue, e a garantia de direitos a qual eu deveria possibilitar, me parecia cada vez mais longe, grandes desafios, porém poucas conquistas.

Como trabalhadora social e com uma expertise em lidar com adolescentes em conflito com a lei, passei a fazer parte, como coordenadora, da equipe que teve como missão implantar o PPCAAM- Programa de Proteção às Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte no Estado de São Paulo. Como os anteriores este trabalho não foi diferente, também desafiador. No PPCAAM mesmo com muitas dificuldades, eu tinha como missão preservar a vida de crianças e adolescentes ameaçados de morte, garantindo seus direitos fundamentais, e na oportunidade responsabilizar o Estado, a Sociedade e a Família pela efetivação de sua missão, muito desafiador e quase impossível.

No ano de 2007, já buscando novos desafios, fui coordenar um Projeto de Desenvolvimento Local na comunidade do Jardim Pantanal em São Miguel Paulista. Este foi um trabalho apaixonante e instigante, pois lá numa comunidade de aproximadamente duas mil famílias, o Instituto Alana, Instituição Não Governamental, possibilitou a mim e a equipe realizar um trabalho que envolvia todos os segmentos: crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Foi nesta comunidade que passei a trabalhar com grupos de mulheres, na garantia e socialização dos seus direitos, na violação destes, na busca de sua autonomia, na geração de trabalho e renda. Muitos projetos se realizaram e mesmo na ausência do Estado naquela comunidade, plantamos sementes onde muitos frutos foram colhidos.

Outra oportunidade surgiu em 2013, onde passei a coordenar duas Casas Abrigo para mulheres em situação de violência doméstica com ameaça de morte. Muitos foram os desafios também, a aproximação com estas mulheres, que viveram ao lado de homens companheiros, maridos e ex-maridos que se tornaram agressores. Uma experiência única.

No início de 2015, passei fazer parte da equipe de gestores das políticas públicas da Secretaria de Desenvolvimento Social e Cidadania no Município de São Bernardo do Campo. Trabalho até o momento como gerente da Proteção Social Especial, que abrange a coordenação de dois serviços: o Centro de Referência da Pessoa em Situação de Rua – Centro Pop e o Centro de Referência Especializado da Assistência Social. A Proteção Social Especial tem como foco e missão trabalhar com famílias e pessoas cujos direitos tenham sido violados e/ou ameaçados, além da presença de violência em suas relações.

Em 2017, iniciei duas frentes de trabalho, uma delas foi a minha primeira atuação na área da saúde, onde trabalho como Assistente Social numa Unidade Integrada AMA/UBS. É um trabalho também desafiador, na medida em que a população é ainda desprovida de recursos públicos, principalmente sociais, acarretando doenças primárias que poderiam ser evitadas se não fosse a falta de compromisso dos gestores públicos, a violência é tamanha que se tornou um descaso da máquina pública com seu povo.

Outra frente de trabalho que assumi em 2017 foi a concretização um sonho, que é de trabalhar com capacitação para profissionais nas áreas da Assistência Social, Saúde e Educação. É um trabalho de ampliação de conhecimentos, de troca, onde discutimos sobre Violência de gênero e diversas violências, entre outros temas, com diferentes grupos de profissionais que atuam diretamente com crianças, adolescentes, jovens, adultos, mulheres e idosos(as) de diversas classes sociais. Quando trocamos experiências e saberes reconstruímos a realidade em que vivemos, o meu papel é de provocar reflexões, muitas vezes desconfortáveis para muitos(as), mas que contribui para a desconstrução de uma cultura machista, patriarcalista e autoritária.

Enfim, acredito que a minha experiência profissional me permite ensinar o pouco que sei, e aprender o muito que não sei.

Senso: Durante essa trajetória, como e quando você passou a atuar com mulheres vítimas de violência?

Cláudia: Em 2013, passei a coordenar duas Casas Abrigo para mulheres em situação de violência doméstica com ameaça de morte. Muitos foram os desafios também, a aproximação com estas mulheres, que viveram ao lado de homens companheiros, maridos e ex-maridos que se tornaram agressores. Uma experiência única. O maior desafio foi buscar compreender o cotidiano de cada uma, quais fatores as deixavam paralisadas permanecendo tanto tempo numa situação de violência? Quais os medos que as levaram a calar-se diante de tamanha covardia? Nesta minha aproximação eu percebi que a manipulação e o controle dos agressores as intimidavam, principalmente em fazer a denuncia logo no início das violências sofridas, além da esperança que elas tinham de que o cônjuge pudesse se transformar em um homem não violento, porém num ciclo de violência e perdão as agressões se se tornavam mais sérias, até chegar ao limite de serem ameaçadas de morte.

Senso: Qual era a sua função específica neste trabalho? Que tipo de atendimento você oferecia? Sua rotina de trabalho?

Cláudia: Eu trabalhava como coordenadora das duas Casas Abrigo para Mulheres em situação de violência doméstica com ameaça de morte na região do ABC.

O objetivo das Casas Abrigo é garantir segurança e proteção a mulheres em situação de violência doméstica e familiar, sob o risco de morte. O trabalho da equipe técnica é intervir no ciclo da violência e propiciando a reestruturação biopsicossocial das mulheres e seus filhos e filhas acolhidos(as) nas casas.

Diariamente era realizado o atendimento psicossocial onde identificávamos através dos relatos das mulheres quem de fato ela é, como podíamos ajudá-la a romper com o ciclo de violência do qual faz parte e quais as estratégias era preciso planeja com ela.

O trabalhos das educadoras é de ajuda-las na reorganização com seus filhos(as), nas atividades de rotina, nas oficinas diárias, acompanha-las nas audiências, busca de empregos. O meu trabalho enquanto coordenadora era:

– Organizar e supervisionar os serviços oferecidos, bem como a execução do trabalho de todos os funcionários.

– Responder mensalmente pela prestação de contas.

– Elaborar mensalmente os Relatórios de Atividades das Unidades incluindo demonstrativo referente ao acompanhamento individual realizado pela Equipe Técnica e/ou rede de serviços.

– Trabalhar com a rede socioassitencial de forma a atender as mulheres e seus filhos e filhas.

– Capacitar as equipes de trabalho.

– Participar dos grupos socioeducativos com as mulheres.

– Participar das audiências judiciárias das mulheres.

– Manter as mulheres em segurança, bem como as equipes de trabalho.

Senso: Seria possível você traçar um perfil geral das mulheres que você atendia? Quais eram as principais denúncias, os principais agressores.

Cláudia: Em relação à faixa etária, as mulheres acolhidas possuem entre 30 a 50 anos de idade.

Quanto ao emprego e renda, a maioria das mulheres acolhidas estavam desempregadas ou nunca haviam trabalhado. As que estavam empregadas possuíam no máximo até dois salários mínimos, e muitas não possuem renda. Percebemos que as mulheres que não possuem renda deixaram seus empregos ou estudos quando se casaram, já que foram proibidas pelos seus companheiros.

Em relação a escolaridade, no ano de 2014 por exemplo apenas uma mulher possui graduação e as demais, a maioria apenas o ensino fundamental.

Quanto a religião, a maioria das mulheres acolhidas eram evangélicas, mais especificamente da Assembleia de Deus. Neste sentido, concluímos que sistemas religiosos podem contribuir para a violência contra as mulheres ao afirmarem sua submissão e secundariedade. A linguagem simbólica ritualizada como são as transmitidas nos cultos religiosos tem um grande poder de impor-se como norma, como regra, ou seja, ela legitima o comportamento das pessoas, à proporção que é considerada sagrada. Assim, se a religião afirma a submissão, a obediência e a inferiorização  feminina, ela afirma também a legitimidade da violência contra as mulheres.

Quanto às denúncias, todas as mulheres que chegam às casas abrigo sofreram violência física, psicológica e moral. E um grande número delas sofreram todos os tipos de violência. Quanto à violência sexual é importante ressaltar que pode ser uma violência bastante comum na vida das mulheres, porém a maioria desconhece seu direito de dizer não ao companheiro quando não deseja ter relações sexuais. A obrigação sexual está imposta em várias linguagens como no próprio regime patriarcalista e machista que vivenciamos, em que o desejo predominante é o do homem, que, por sua vez, se julga no direito de obrigar suas companheiras a ter relações quando desejarem.

Senso: Em que momento da sua atuação com mulheres que sofrem violência, você percebeu que a religião era uma questão importante?

Cláudia: Foi quando percebi que muitas mulheres não denunciavam seus agressores nas Delegacias da Mulher ou outro serviço da Assistência Social, mas sinalizavam as violências vividas pelos companheiros, estas muitas vezes estendidas aos seus filhos e filhas, para seus líderes religiosos. Minha indignação aumentou ainda mais quando percebi que muitos dos líderes religiosos, mesmo sabendo das relações violentas nos lares, não se empenhavam em encaminhar ou mesmo denunciar os agressores, mas sim reforçavam a manutenção da violência contra as mulheres através do incentivo ao pedido de “perdão”, ou mesmo outros argumentos que as inibiam a tomarem atitudes mais firmes.

Senso: Por que, e quando você sentiu que deveria fazer uma pesquisa de mestrado sobre violência de gênero e religião?

Cláudia: Apesar de trabalhar há muito tempo com violência, não pude deixar de sentir tamanha indignação ao atender mulheres, com seus filhos e filhas, nas Casas Abrigo Regional Grande ABC, ameaçadas de morte pelos companheiros. Ouvir suas histórias, suas dores, olhar para as marcas, visíveis ou não, foi o bastante para repensar a efetividade do trabalho profissional que estamos desenvolvendo para combater este fenômeno. A violência contra as mulheres não é apenas uma violência comum, mas uma cultura que se estende desde o início da nossa história. Ao questionarmos os motivos pelos quais as mulheres viveram tantos anos sob ameaças e agressões de seus companheiros, uma das justificativas mais comuns entre as acolhidas foi que estavam sendo “assistidas” por lideranças religiosas nas igrejas que frequentavam, porém permaneciam em situações violentas que quase as levaram à morte. Tais circunstâncias me despertaram para uma envolvente e complexa indagação: existe relação entre violência doméstica e religião? Em que medida as ações violentas de gênero são justificadas pelos discursos religiosos? Quais são estes discursos?

Senso: Você poderia falar em linhas gerais, quais são os principais objetivos da sua pesquisa e também sobre o caminho metodológico para o desenvolvimento da mesma?

Cláudia: O principal objetivo da minha pesquisa foi analisar se e como as instituições cristãs contribuem, por meio de seus discursos religiosos, para a reprodução e perpetuação da violência doméstica, tanto no que tange às vítimas, quanto aos agressores, tendo como referência as mulheres atendidas nas Casas Abrigo Regional Grande ABC.

Para tanto, foram coletados dados com o objetivo de serem transformados em elementos e análises para contribuir com o trabalho de profissionais da área social, para elaboração de propostas de intervenção ao enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres, como subsídio para ações de mobilização e participação de novos atores sociais e organizações religiosas, nas discussões sobre o enfrentamento da violência de gênero no Brasil.

Senso: Que aspecto mais te chamou a atenção nos relatos das mulheres religiosas, que são/foram vítimas de violência?

Cláudia: O aspecto que mais me chamou a atenção foi a prática do “perdão”. Muitas mulheres, acreditando que o agressor pode mudar de forma milagrosa, sem nenhuma intervenção socioeducativa, retomam a relação conflituosa ou nela permanecem, mesmo depois de sofrerem agressões sérias e serem ameaçadas de morte, como o caso desta mulher que em entrevista para a minha pesquisa concedeu o seguinte depoimento:

Uma das qualidades que eu tenho é uma coisa muito boa, que é a de perdoar, eu perdoo fácil, eu perdoei meu marido, porque eu sei que ele precisa de ajuda. Eu tirei a queixa dele e conversei com as minhas filhas pra elas perdoar ele e falei que todo mundo merece perdão. Se a gente não perdoar aquele que nos ofende, nós também não merecemos perdão. A falta de perdão, ela prejudica mais a gente do que a própria pessoa. (Mirtes, 2016, nome fictício)

Senso: Na sua pesquisa, você também entrevista homens agressores? O que mais te chamou a atenção nos relatos destes homens?

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Cláudia: O que mais me chamou a atenção foi a segurança que eles tem em dizer que são donos de suas companheiras e que por esta razão elas devem fazer o que eles mandam. Em nenhum momento durante as entrevistas eu percebi qualquer arrependimento ou remorso, a não ser pelo fato de alguns deles terem sido presos. Entre os depoimentos este abaixo me chamou a atenção, pois ele diz abertamente que é o dono da relação em tom ameaçador:

Eu acho que o homem é mais agressivo e explosivo que a mulher, o homem com cinco minutos ele mata; a mulher, não, ela sabe sair. O homem já não, ele vai para cima ou ele mata ou ele morre, porque o homem é mais forte, o homem é o pilar da casa.

Senso: Ainda sobre os homens agressores, em especial, aqueles que são pastores. Como eles utilizavam do argumento religioso para “justificar” ou se “desculpar” das agressões que eles cometiam com suas companheiras?

Cláudia: O argumento mais utilizado entre as lideranças religiosas sejam eles agressores ou não, é o fato de não só na igreja cristã católica que o matrimônio deve permanecer indissolúvel, mas na maioria das denominações religiosas cristãs, esta é uma das formas de controlar a sexualidade feminina, visto que a mulher deve manter relações sexuais apenas dentro do matrimônio. No caso das mulheres que sofrem violência, esta doutrina imposta pela igreja muitas vezes faz com que elas permaneçam numa relação conflituosa por acreditarem estar cometendo algum pecado e, portanto, são castigadas.

Outro argumento é a promessa de melhorar, e depois do espancamento e agressões vem os pedidos de desculpas, o retorno a vida em família e principalmente da família unida perante à Deus.

Senso: Diante dessa triste realidade que você nos mostrou, na sua opinião, qual tem sido o papel da igreja em relação a isso? A partir das entrevistas, das mulheres e dos homens que você entrevistou, você acha que a igreja mascara a violência contra as mulheres?

Cláudia: Ainda nos dias de hoje, no seio das famílias, a hierarquia se faz segundo o preceito bíblico de que o homem é a cabeça e a mulher, o coração, e é claro que a emoção é considerada inferior à razão. A igreja considera que a mulher deve sujeitar-se ao homem, pois este é considerado “naturalmente” o governo da casa e da mulher. A ela, cabe a vida doméstica. Neste sentido, ao sofrer agressões ou outras dificuldades, as mulheres devem apelar para as orações, através das quais possam pedir para que transformem a si mesmas e os companheiros. As mulheres são responsáveis até mesmo por orarem pelos seus maridos, pois eles se sentem isentos de fazer o mesmo pelas esposas. Contudo, a violência doméstica está bastante presente em diferentes contextos religiosos, das mais variadas formas, seja pelos líderes religiosos que professam suas interpretações bíblicas através dos discursos religiosos, seja pelas orientações oferecidas às mulheres. Ela também se faz sentir na pactuação da cultura do silêncio e na negação da própria existência da violência, na omissão em relação a essa prática por meio das estruturas indevidas, que mantêm e disseminam esta ideologia, ou ainda, nas ações de fiéis que cumprem seu papel de reprodutores da violência doméstica.

Senso:  Na sua opinião, a igreja tem potencial para denunciar e ajudar as mulheres que sofrem violência de gênero? Como?

Cláudia: Sim com certeza. Em diversas denominações religiosas, inclusive nas igrejas pentecostais, as mulheres se organizam em grupos exclusivamente femininos, com o objetivo de conversar e explorar os estudos bíblicos. Muitas vezes suas leituras divergem das interpretações realizadas pelas lideranças religiosas, o que sinaliza importantes possibilidades de autonomia e empoderamento dessas mulheres. Outra forma de participação de mulheres em espaços religiosos são as pastorais ligadas à igreja católica. Uma das preferências para se realizar os trabalhos nas pastorais é que elas residam nos próprios bairros onde prestam seus serviços voluntários. Tal critério contribui para sua atuação, pois a maioria conhece as famílias moradoras na comunidade, suas angústias e maiores dificuldades, como por exemplo as violências sofridas por outras mulheres, facilitando os encaminhamentos para os serviços públicos e divulgação dos mesmos.

Há mulheres que consideram os espaços oferecidos pelas igrejas como referência para suas demandas cotidianas. Muitas se organizam para distribuir as doações realizadas por fiéis de todas as espécies e repassar para as famílias que estão passando por situações difíceis.  Mulheres que estão sofrendo violência doméstica buscam ajuda nestes espaços quando, por exemplo, necessitam sair de suas casas às pressas para não morrer, ou quando estão passando por necessidades básicas. Algumas mulheres que ficaram acolhidas encontraram apoio nas igrejas para situações emergentes de violência que estavam vivendo. A igreja vem sendo o lugar de referência para muitas mulheres, por isso elas buscam ajuda ali para sair da situação de violência, seja para se deslocar para casas de parentes em outras regiões ou para conseguir recursos alimentícios para subsidiar os filhos e filhas quando conseguem se livrar dos agressores. Nesta perspectiva, os espaços religiosos, por serem considerados seguros e confiáveis pelas mulheres que estão sofrendo violências e/ou ameaças, tornam-se alternativas para conseguirem superar a situação que estão vivendo.

Senso: Você poderia indicar algum movimento ou/e grupo de mulheres, com identidade religiosa, que tem buscado denunciar e ajudar mulheres que são vítimas de violência?

Cláudia: Existem algumas iniciativas: As Promotoras Legais Populares, que são mulheres líderes em suas comunidades, igrejas e associações, que realizam formação sobre as leis de enfrentamento a violência contra as mulheres, além de terem desenvolvido consciência crítica e reflexiva sobre os conteúdos machistas, classistas e patriarcais. As mulheres PLPs, além de aprenderem a reconhecer situações de violência e de violação de direitos, sabem apontar os mecanismos jurídicos de proteção das mulheres. Elas estão inseridas em vários ambientes, sociais e principalmente religiosos, onde estão trabalhando para ajudar não só seus líderes comunitários, mas também suas lideranças religiosas a não reforçar a violência contra as mulheres com leituras e interpretações patriarcalistas, mas sim, a olhar para elas como cidadãs de direitos.

Senso: Quais dicas você poderia nos dar se por acaso, alguém perceber que uma mulher que frequenta a igreja, ou qualquer outro ambiente religioso, der indícios de que sofre violência? Como devemos proceder na prática?

Cláudia: A Lei Maria da Penha estabelece uma gama de indicações e decisões articuladas a serem tomadas para a efetivação do enfrentamento à violência doméstica e familiar, sendo uma de suas finalidades a legitimidade pública, segundo a qual o problema deixa de ser apenas da mulher que está em situação de violência doméstica, e passa a ser de toda a sociedade. Outro apontamento de suma importância que consta na referida lei, é a efetivação de ações articuladas da rede socioassistencial multidisciplinar, em que são envolvidas várias políticas públicas governamentais, magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e organizações da sociedade civil, e as igrejas que são instituições fundamentais que não só podem identificar as mulheres que estão em situação de violência, como devem encaminhá-las para os órgão competentes, na medida em que elas fazem parte desta rede de proteção.

Senso: Que tipo de leituras você poderia nos indicar sobre o tema da violência de gênero e religião, que seriam importantes para a conscientização dessa realidade através de rodas de conversa, e grupos de debate nas igrejas e em outras instituições religiosas?

Cláudia: São várias leituras que se fazem importantes para discutir a violência contra as mulheres:

– Lei Maria da Penha 2006.

– BRASIL. Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher – Plano Nacional/ Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Brasília, 2003. p.58

– Vamos conversar? Cartilha de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres. ONU Mulheres.

– LEMOS, Fernanda. A mulher como sujeito de sua própria história. In: Uma sociedade de Mulheres? Para além da separação de homens e mulheres. IHU on-line Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo: UNISINOS, 2007,14 -19.

– POLÍTICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres Secretaria de Políticas para as Mulheres – Presidência da República Brasília, 2011.

– SILVA, Caio Andreo e SOUZA, Leonardo Lemos de. Ser “Macho” é ser violento? Interlocuções entre masculinidades e violência. Fazendo Gênero. Desafios atuais dos feminismos, 2013.

– SOUZA, Sandra Duarte de. Gênero e religião nos estudos feministas. In: Revista Mandrágora. UMESP, SBC, 2004.