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Direitos Humanos, Luta por Moradia e Espiritualidade Libertadora

Direitos Humanos, Luta por Moradia e Espiritualidade Libertadora

© Mídia NINJA

Este texto tem o objetivo de propor uma reflexão acerca da luta por moradia, em diálogo com a perspectiva dos Direitos Humanos e com a espiritualidade libertadora. Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, a moradia é considerada um direito humano fundamental. O Brasil, como membro da ONU, assina embaixo do que diz a Declaração dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis”. Isso porque os tratados e acordos internacionais assinados pelo Estado brasileiro têm força de lei, o que os torna obrigatórios dentro do nosso território.

Além da declaração da ONU, o Brasil também integra o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que foi promulgado em 1966. O Pacto diz que os Estados que o assinaram “reconhecem o direito de toda pessoa a nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida.” Essas assinaturas internacionais colocam o Estado brasileiro como responsável pelo direito à moradia. E há diversas leis nacionais que tratam da questão, como a Emenda Constitucional nº 26, que foi promulgada no ano 2000, e incorporada à Constituição Federal de 1988. Diz ela: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Além disso, o Estado deve promover políticas públicas para a construção e o acesso a moradias dignas.

Indicamos então que a o direito à moradia é um direito humano básico e fundamental. Como disse certa vez um poeta “até os pássaros voltam à noite para casa”. A moradia não é apenas uma casa, a moradia é verdadeiramente um lar. É nela que iniciamos nosso dia, onde podemos desfrutar de um bom café da manhã, abrir as janelas para que o ar do universo todo invada nossa morada, é onde compartilhamos momentos bons e ruins com nossos familiares e amigos, é onde podemos cuidar de outras formas de vida como os animais e as plantas, é onde repousamos e nos refazemos para o dia seguinte. Para muitos o lar é o mesmo espaço físico do trabalho e dos estudos. A lei é fundamental. Mas muito mais do que um direito legal, a moradia nos remete à dignidade humana.

Com o advento e o crescimento das cidades, o acesso à moradia para a população trabalhadora e mais pobre tornou-se cada vez mais difícil. Como aponta Ermínia Maricato (2015): “A garantia de uma moradia digna implica condições financeiras para adquiri-la, além de ser fundamental que a mesma esteja geograficamente integrada ao trabalho, ao lazer, aos sistemas de transporte e aos serviços públicos de forma geral” (p.22). Sabemos que a realidade urbana hoje não favorece uma vida equilibrada e saudável para a população mais pobre. Geralmente a moradia a que se tem acesso, seja por ocupação, compra, programas habitacionais, aluguel, divisão de espaço com familiares etc. não está, na maioria das vezes, integrada a outras esferas, necessárias a uma vida digna, como os serviços de educação, saúde, segurança, cultura, transporte etc.

A luta por moradia tornou-se um imperativo político para os mais pobres neste início de século XXI. Hoje, o maior movimento social que atua neste campo é o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, o MTST. E o MTST não se define como um movimento de moradia apenas, mas como um ator político que luta também pelo acesso a direitos sociais fundamentais, como os citados anteriormente, e principalmente pela transformação da sociedade como um todo (CAMPOS, M; RAFAEL, R; SIMÕES, G., 2017). Nas ocupações do MTST cultiva-se muito a formação política dos acampados sem-teto. Certa vez o pastor Henrique Vieira, do Rio de Janeiro, disse em uma palestra que após a suspensão de uma reintegração de posse de uma ocupação do MTST, uma senhora lhe disse: “Ficaremos na ocupação, com a glória de Deus e com sua força para a luta!”, o que mostrava claramente a crença religiosa daquela sem-teto, e com certeza de muitos outros mais ali naquele espaço de luta.

O MTST originou-se no fim dos anos 1990 do Movimento Sem-Terra (MST), que, desde suas origens, cultivava a dimensão espiritual de seus militantes, para além de confissões religiosas, mas sempre alimentando a dimensão libertadora da fé. O MTST herdou essa tradição e, ainda que não tenha momentos formativos tão estruturados como o MST, conta com uma base militante extremamente religiosa. Destaco um episódio em especial: no dia 31 de outubro de 2017 a ocupação Povo Sem Medo de São Bernardo do Campo realizou uma grande marcha, saindo do ABC paulista e indo até o palácio do governo do estado de São Paulo, na zona sul da capital. Em reunião anterior, o dirigente nacional do MTST, Guilherme Boulos, pediu-nos que organizássemos uma celebração ecumênica para antes da marcha. No dia marcado estávamos às cinco horas da manhã e 8 mil famílias estavam concentradas para uma linda celebração inter-religiosa, que foi conduzida por uma mãe-de-santo, um pastor evangélico e um padre católico. A espiritualidade libertadora tem, cada vez mais, alimentado as dimensões religiosa e política dos militantes e do MTST como um todo.

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O MTST respeita todas as crenças religiosas e tem procurado cultivar a mística libertadora e a fé engajada nos momentos de formação e de celebração em suas ocupações, O movimento sabe que a cultura cristã arraigada em nossa sociedade precisa, muitas vezes, de apenas um despertar para se lembrar que é herdeira de um trabalhador pobre, periférico, migrante, perseguido e morto politicamente e, sem sobra de dúvida, um sem-teto de sua época! A memória subversiva de Jesus de Nazaré e o engajamento político consciente são marcas dos sem-teto hoje em sua luta por moradia, por direitos sociais e pela transformação radical da sociedade, que almeja construir a terra sem males, o bem-viver, o socialismo, o Reino sonhado por Jesus!


Referências

MARICATO, e. Para Entender a Crise Urbana, Editora Expressão Popular: São paulo, 2015.
CAMPOS, M; RAFAEL, R; SIMÕES, G. MTST – 20 Anos de História: luta, organização e esperança nas periferias do Brasil. Editora Autonomia Literária: São Paulo, 2017.
Organização das Nações Unidas (ONU), Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.
Organização das Nações Unidas (ONU), Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966.