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“As religiões só contribuem com a efetivação dos direitos humanos quando elas ocorrem para além das missas, dos cultos, das giras, das reuniões…”

“As religiões só contribuem com a efetivação dos direitos humanos quando elas ocorrem para além das missas, dos cultos, das giras, das reuniões…”

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Entrevista com Joanna Maranhão


© Débora Ludwig
© Débora Ludwig

Nesta edição, a Senso entrevistou Joanna Maranhão, natural de Recife, iniciou na natação aos 03 anos de idade e ainda nas categorias de base demonstrava talento e domínio técnico dos 4 estilos. Ingressou na seleção brasileira aos 14 anos e em seu primeiro campeonato internacional absoluto, garantiu índice para os Jogos Pan Americanos de 2003 em Santo Domingo. Especialista em provas de medley e meio fundo, Joanna é detentora do melhor resultado de uma mulher brasileira em Jogos Olímpicos (Quinto lugar nos 400 medley em Atenas). Invicta nas provas de medley desde 2002, possui 8 medalhas em Jogos Pan Americanos, 8 recordes sulamericanos e 4 participações em Jogos Olímpicos.

Projeto Infância Livre

Criado em 2014, a ONG presidida por Joanna Maranhão tem como objetivo combater a pedofilia através de educação sexual para crianças e adolescentes. Com ações pontuais, palestras e rodas de conversa, Joanna frequenta escolas públicas, particulares, conselhos tutelares abordando o tema contando sua própria história e como encontrou a melhor forma de viver através do trauma. O projeto tem como premissa a educação como forma de prevenção.

Emancipa Esporte

A rede emancipa existe há 10 anos com cursos preparatórios para vestibular para jovens de periferia. Dentro da mesma ideia, buscando democratizar a natação, foi criado o emancipa esportes, que atende 80 crianças da rede pública com aulas de natação.

Emancipa Esporte com Joanna Maranhão

A seguir, você confere a íntegra da entrevista:

Senso: O que motiva você a militar em favor de Direitos Humanos?

Joanna: Demorei mais do que eu deveria para desenvolver empatia e perceber que a maioria das pessoas não tem os mesmos privilégios que eu. Nunca fui rica, mas nunca me faltou absolutamente nada. A empatia foi algo que veio junto com a maturidade: sair da bolha, olhar para o lado, entender as “competições” da vida e como elas são desonestas porque cada um parte de um ponto diferente. Sempre me reconheci como alguém espiritualista, mas eu não vivia isso no dia a dia.

Senso: Há, na sociedade brasileira, uma compreensão de que os Direitos Humanos servem somente para não punir bandidos. Como você percebe isso?

Joanna: É manipulação de massa, a classe média que tanto bate na classe C por não saber votar ou não ter o mesmo intelecto, ainda não percebeu que não é burguesia, é classe trabalhadora, que ter um apartamento e um carro não te faz patrão, ela prefere, de um modo geral, se identificar com discursos repetidos que acabam se tornando verdade.

Senso: Como você liga as dimensões da religiosidade, da prática de esporte de alto rendimento e a luta por Direitos Humanos? Há alguma relação entre essas realidades?

Joanna: Há uma relação total! Minha relação com o esporte de alto rendimento deixou de ser em relação aos outros: a colocação que termino, a medalha que conquisto, (é óbvio que gosto de ganhar), gosto muito mais de ganhar de mim, e essa competição ela é diária e independente do outro. Isso não se restringe apenas à minha profissão, eu busco desenvolver a melhor versão de mim mesma em tudo na minha vida, isso é muito latente em mim. Ou seja, talvez pra desenvolver a melhor atleta do mundo eu teria que optar por caminhos egoístas que iriam de encontro ao desenvolvimento do melhor ser humano que busco ser. Então preferi buscar melhorar a mim: melhor treino, melhor alimentação, melhor recuperação e assim fui evoluindo nos tempos e na carreira. Eu sempre converso com Deus antes das competições, mas eu nunca pedi pra vencer, eu sempre pedi que ele me permitisse conquistar aquilo que era de meu merecimento. Assim, o desenovolvimento da espiritualidade me motiva a viver a caridade, buscar ser crística no dia a dia, reconhecer erros, nunca, em hipótese alguma ter certeza absoluta de nada, jamais perder a vontade de aprender, aprender a ouvir, agradecer pelas mínimas coisas que, quando fazem falta pro outro, se tornam imensos fardos, buscar retribuir o que o esporte me proporcionou a quem, talvez, nunca tivesse acesso a uma piscina, transformar a experiência mais traumática da minha vida em forma de educar crianças e prevenir abuso sexual, o que também me ajuda a perdoar quem fez isso comigo.

Senso: De que forma você percebe que as religiões contribuem para a efetivação dos Direitos Humanos?

Joanna: As religiões só contribuem com a efetivação dos direitos humanos quando elas ocorrem para além das missas, dos cultos, das giras, das reuniões, elas contribuem quando aplicamos os seus valores positivos em nosso cotidiano. Mas elas podem também impedir essa efetivação, quando propõem sectarismo, quando começam a tolher a liberdade afim de manipular massas. As bancadas religiosas, por exemplo, influenciam negativamente em todos os sentidos. Podem existir religiosos políticos, mas não pode existir uma bancada religiosa que fere a laicidade do estado, essas pessoas não são cristãs.

Senso: Quais garantias temos de um Estado verdadeiramente laico no contexto de crescente conservadorismo e da existência da bancada dita cristã na política?

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Joanna:  Assim como é muito difícil ver a efetivação dos direitos humanos e de outros princípios da constituição de respeito à diversidade, dignidade a todas as pessoas a laicidade está pra acontecer um dia ainda. Eu acho que a única forma que nós temos para chegar lá, são as lutas democráticas e pressionando todos os espaços, para que sejam cada vez mais inclusivos. Representatividade é um eixo importante para nós. Quanto mais tivermos mulheres, pessoas negras, de diferentes religiões, indígenas, jovens, idosos, pessoas com deficiências, de as origens, ocupando os espaços de poder, mais poderão ser equilibradas essas forças sociais. E a gente precisa também atuar para reduzir o poder econômico sobre as instituições, porque essas religiões que estão entrando no Estado para fazerem valer as suas posições, estão interessadas nos ganhos econômicos que elas podem ter como negócios. Negócios esses que controlam meios de comunicação, organizações sociais e outras instituições rentáveis. Então, existe o uso da fé pra servir interesses capitalistas. Dessa forma, destruir a laicidade do Estado é condição para essas religiões que estão nessa pegada, buscarem ter mais poderio.

Senso: Em tese, o Brasil é um Estado Laico, mas a sociedade identifica-se bastante com as religiões. Na sua opinião, é possível construir algum diálogo em favor dos Direitos Humanos que passe pelas religiões. Como poderia ser?

Joanna: Respeitando a individualidade, a pluralidade religiosa do Brasil.

Senso: Em sua opinião, qual o papel do cidadão, que tem uma fé religiosa, na efetivação dos Direitos Humanos?

Joanna: Vou tentar responder usando como exemplo o que eu penso em relação ao aborto. Como umbandista, que crê na reencarnação, eu, Joanna, jamais interromperia uma gravidez, ainda que ela fosse oriunda de um estupro. Essas são as minhas razões por uma questão religiosa. Porém, não posso permitir que essa seja uma decisão do estado, essa é uma decisão minha, e cada mulher deve ter o direito de decidir os rumos de seus próprios corpos. Eu não faria e não me cabe julgar quem já fez ou quem faria. Legalização do aborto é uma questão de saúde pública, não religiosa. Acho que é assim que devemos nos posicionar em relação aos direitos humanos.

Senso: Você está à frente de um projeto social de educação e esportes, o Emancipa Esporte. É possível ao cidadão comum trabalhar pela efetivação dos direitos humanos. Quais maneiras você enxerga disso?

Joanna: Todo mundo pode fazer alguma coisa, eu tinha o hábito de fechar os vidros do carro em todo sinal, olhar de cara feia caso alguém se aproximasse, agora eu abaixo o vidro, dou bom dia boa tarde ou boa noite, e os pedintes se assustam. Eles se assustam em ver que alguém os enxerga, eu nem dou dinheiro na maioria das vezes, mas eu penso que a gente precisa parar de tornar os outros invisíveis, e a gente faz isso pra não perceber a desigualdade excludente que a gente vive. Eu quero sempre me manter acordada pra isso, nunca permitir que o sistema me engula e me transforme nessa engrenagem que pensa somente em mim.