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Enfraquecimento da Religião e Afirmação dos Direitos Humanos

Enfraquecimento da Religião e Afirmação dos Direitos Humanos

© Maria Objetiva

É inegável que a religião é um assunto pertinente de se debater. Por mais que esteja em curso um processo de secularização, a religião continua sendo um elemento presente na formação das pessoas. Mais de 90% dos brasileiros dizem pertencer a alguma religião, segundo dados do Censo IBGE 2010. São também essas pessoas que pertencem a religiões que vão compor os espaços de poder e governança e, dentro do jogo democrático, estão sujeitas às leis do Estado, sobretudo da Constituição Federal. É sabido, também que algumas pautas dos direitos humanos se chocam frontalmente com doutrinas morais de religiões. Seria simplista dizer que basta cumprir a lei.

A título de exemplo, as bancadas religiosas se posicionaram contra o reconhecimento da união civil de pessoas homossexuais. O deputado e pastor evangélico Ronaldo Fonseca (PR-DF) fez a seguinte afirmação: “Como religioso, eu tenho que lamentar mais ainda. No Brasil, nós temos uma cultura judaico-cristã. Mais de 80% desta nação é constituída de homens e mulheres, de cidadãos e pessoas que têm fé cristã. Ora, a fé cristã nos dá base para rejeitarmos uma outra modalidade de família.” O parlamentar usa do argumento de maioria para legitimar como lei uma regra moral de uma religiosidade cristã.

Contudo, mesmo a maioria da população brasileira se constituindo por pessoas que se declaram religiosas, isso não quer dizer que a religião da maioria pode se sobrepor às minorias com suas crenças e cultos. Segundo o desembargador Antônio Carlos Curvinel, do TJMG, “sendo o Brasil um Estado eminentemente laico, é seu dever manter a ordem democrática no sentido de assegurar a igualdade de todos os segmentos religiosos.”. Ou seja, o argumento de maioria, apresentado pelo deputado, afronta os direitos humanos fundamentais, persistindo o problema entre direito e religião.

Uma proposta que apresentamos para o diálogo entre direito e religião pode estar no conceito de enfraquecimento, cunhado pelo filósofo italiano Gianni Vattimo. De maneira mais própria, o que queremos propor aqui é que se enfraquecendo compreensões de Deus, ou se enfraquecendo as perspectivas dogmáticas das quais está a serviço as frentes parlamentares religiosas, é que se se pode afirmar os direitos humanos, incluso aqui o direito à liberdade religiosa e da livre manifestação pública da religiosidade, sem que isso gere prejuízos ao Estado Democrático de Direito e às garantias de direitos individuais do cidadão.

Para entender o que é o enfraquecimento é preciso pensar o seu oposto, o pensamento forte. Ele é um pensamento dogmático e alimenta violência ao querer reduzir toda a realidade à sua capacidade de compreensão. Ele pode ser encontrado em afirmações fundamentalistas, exclusivistas. Segundo Gonçalves, “no fundamentalismo, verifica-se a pretensão da religião a ser absoluta ou até ser única religião verdadeira, sendo sua característica principal interpretar textos religiosos e aplica-los a diferentes situações sociais.” (2015, p.113). O pensamento forte é pouco democrático por não violar direitos humanos fundamentais, como a igualdade de direitos, a liberdade religiosa, a liberdade de consciência. Dessa maneira, também as afirmações das religiões não são eternas, mas também elas construções históricas e verdades contextuais, perspectivas.

Os direitos humanos nascem para impedir a violência do Estado sobre o indivíduo, assim ele representa um enfraquecimento do Estado, um limite que se lhe impõe a Constituição.  Eles, de alguma maneira, enfraquecem o poder estatal e assegura os direitos individuais do cidadão.

Segundo o jurista Canotilho, foi a luta pela liberdade religiosa que originou os direitos humanos fundamentais, e a luta pela liberdade religiosa se dá em um contexto de ocaso da cristandade. Assim sendo, os direitos humanos fundamentais enfraquecem, pelo menos no plano teórico a força das religiões e a imposição de suas normas morais no Estado.

Aqui se faz necessário discutir, acerca da relação entre direito e religião diante da ação das bancadas religiosas no Congresso nacional. Os parlamentares têm sim o direito de livre associação, ou seja, de constituir suas bancadas mas esse direito não pode se opor ao direito de liberdade de consciência e liberdade religiosa da população que não confessa a mesma fé que eles. A ação desses parlamentares ao tentar impor como lei seus costumes religiosos atenta contra os direitos humanos fundamentais.

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As religiões, para conviverem em um espaço democrático não têm o direito de, pelo menos no contexto do atual ordenamento jurídico, imporem seus dogmas e suas morais, sob o risco de colocarem em questão a dignidade da pessoa humana. Assim sendo, para que possam contribuir com o debate democrático, faz-se necessário reconhecer que suas afirmações morais e dogmáticas somente fazem sentido dentro de suas visões de mundo, compartilhada por seus grupos de fiéis, que são contextuais, históricas, enfraquecidas. Sem isso, a democracia se fragiliza diante das tentativas de reconstrução da cristandade.

O Estado Democrático de Direito, ao institucionalizar a dignidade humana como valor enfraquece a religião, suas morais e dogmas e, concomitantemente, permite a todas elas existir e se manifestar. Mas isso não quer dizer que elas têm o direito de se impor. Mas isso quer dizer que, para serem livres elas não podem se impor no espaço democrático, pois é a diversidade mesma que garante a possibilidade de subsistência da religião. Segundo o filósofo italiano Gianni Vattimo, é justamente essa Babel religiosa que permite às religiões subsistirem no mundo atual, por não serem únicas, com validade universal.

A afirmação dos direitos humanos fundamentais faz com que seja necessário um enfraquecimento da religião, afim de salvaguardar bens jurídicos de demasiada importância por se relacionarem com a dignidade do ser humano. O fortalecimento de frentes parlamentares religiosas, que têm como finalidade a propagação da fé, compromete o direito à liberdade de pensamento, o direito à liberdade religiosa, além do direito à igualdade fundamental dos seres humanos. Enfraquecer a religião para poder afirmar os direitos humanos, um desafio que se impõe à democracia.