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O (in)diferente religioso

O (in)diferente religioso

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Fui criado, como a maioria das/os brasileiras/os, no seio de uma família com fortes raízes católicas. Minha educação foi atravessada pelos princípios cristãos, mesmo que já um pouco abalados pelo tempo. Estudei, também, em colégios que seguiam esses dogmas religiosos, ora mais, ora menos, a depender do assunto que estivesse em questão. Essa descrição significa ter sido criado num meio em que as origens católicas já se mostravam em vias de desmoronar, resistindo, sofridamente, contra a tendência de secularização tão marcada em nossos tempos.

Cheguei a fazer a Primeira Comunhão, com 11 anos de idade, pela oportunidade oferecida pelo meu colégio de então, que conseguia nossa inserção na Igreja Católica do Santo Cura D’Ars. Se passei, com sucesso, pelo batismo e pela comunhão, a crisma, que deveria ter acontecido alguns anos depois, teve destino diferente. Ela foi adiada, repetidamente, até que meus pais — na realidade, especialmente minha mãe — abrissem mão da ideia e parassem de insistir nesse terceiro tempo de formalização do meu compromisso com a religião católica.

Nesse meio tempo, muitas questões começaram a perpassar minhas preocupações de maneira a consumir meus pensamentos em torno das verdades que muitos de meus familiares tomavam como dado, como pressuposto, como algo que estaria longe de ser sequer um problema a pensar. Sabemos como a época da puberdade nos coloca em movimento, a fim de nos perguntarmos sobre o nosso lugar no mundo. É ali que temos de começar, inicialmente, a nos posicionar enquanto sujeitos que têm alguma postura e responsabilidade frente à cultura.

Cada um tem de construir uma resposta perante essa novidade que irrompe na adolescência, que é o surgimento, no corpo e na psique, de uma série de novas exigências que se impõem a todas e todos, ainda que para cada um/a à sua maneira. Para mim, a religião apareceu, bem como para tantas outras pessoas, como uma resposta facilitada pela cultura para dar conta de nossos dilemas, exigindo de nós apenas certa confiança de que haveria ali uma palavra que nos fornece algum tipo de sentido e garantia quanto à miríade de desafios da vida.

No entanto, nessa equação, uma variável fez com que me distanciasse dessa resposta que eu considerava como pronta, sendo, por isso, suspeita até demais; eu desenvolvi, na época da adolescência, um forte desejo de saber, traduzido em estudos incansáveis que me fizeram me guiar para o campo da literatura e da filosofia, articulados ao sem sentido da existência, mais além de todas as ficções da cultura que nos tentavam fazer adormecer. Foi com a leitura de autores como Nietzsche, Freud e Machado de Assis que comecei a pensar que ali estava gente que tinha algo de sério a dizer sobre a existência; para um jovem púbere que buscava seu próprio espaço de respiração frente a tantas demandas familiares e escolares de domesticação, escritores como esses a que me referi serviram como alavanca para meu primeiro distanciamento em relação ao campo da religião.

Num primeiro momento, durante o nono ano do fundamental e o primeiro ano do ensino médio, acredito hoje que se tratava então de uma conduta endereçada, reativa, que reagia a essa pressão, por assim dizer, por certa adequação ao rebanho. Fiz minha oposição enérgica, mesmo que seletivamente silenciosa entre alguns membros da família, às imposições religiosas que implicitamente roçavam minha vida desde a infância. Ao mergulhar no campo da Literatura e da Filosofia, acreditei encontrar outras vias para conversar sobre os dilemas da existência.

Tive, por muito tempo, a impressão – que, afinal, ainda perdura em grande medida – a impressão de que a religião acaba por tentar silenciar o pensamento; ela impede a conversa, ao tentar trazer uma resposta pronta, última, garantidora da verdade, inibindo, assim, todo esforço por refletir a sério acerca da condição humana no mundo. Para mim, pareceu mais interessante trocar as certezas prontas da religião pelos consolos árduos da filosofia.

Numa mescla de certo pessimismo cult do século XIX europeu com uma tentativa de me posicionar no mundo com determinada imagem de mim mesmo, pude arrogar-me uma independência e maturidade de pensamento que não supunha encontrar em meus colegas e familiares. Esse distanciamento da religião, que parecia uma dura empreitada, por estar articulado a algo de que eu queria me livrar, acabou sendo a oportunidade de eu estar a serviço de outro tipo de discurso. Um discurso que se fecha, de forma reativa, às manifestações religiosas, tidas como decadentes e demasiado limitadas.

Foi só ao longo de algum tempo, não tão longo assim na verdade, que pude abrir mão dessa postura excessivamente pretensiosa e arrogante que tentei sustentar por tanto tempo. O saber não era suficiente para dar conta das nossas tão complicadas questões. O primeiro golpe narcísico, por assim dizer, na minha posição de fechamento veio por ocasião de um contato, no segundo ano do ensino médio, com um professor de ensino religioso e filosofia, que me apresentou formas de viver a religião e a espiritualidade muito diferentes dos modos que eu presenciara até então.

Esse contato até hoje perdura, e me sinto grato ao professor que se tornou amigo, pela ajuda que, tempos depois, revelaria o ponto fundamental no qual ela tocou. Ponto que se reúne com um processo de relativo distanciamento, num segundo tempo, em relação à filosofia, autora-mor de meu primeiro resgate das supostas trevas da religião. Esse movimento fez parte de meu processo de iniciar uma experiência de psicanálise, paralelamente à época de entrada na graduação em Psicologia, curso que optei fazer, entre outros motivos, pela voracidade com a qual minhas questões me assolavam.

Assim, o processo analítico, conjugado com os estudos na faculdade, foi de importância capital para o segundo golpe narcísico que sofri, referente ao desafio de consentir com o fato de que o saber não esgota tudo. Nossa dimensão afetiva, a despeito de todas as tentativas, encontra-se intocada, de um ponto em diante, pelo campo do conhecimento. A possibilidade de tratar de minhas questões num espaço como o fornecido pela psicanálise teve valor essencial para que, com o correr dos anos, a questão religiosa, que, por um bom tempo, teve presença marcante em minha vida, começasse a se diluir.

Acredito que, atualmente, os pontos de resistência em que eu me colocava em relação aos familiares e aos colégios não mais fazem sentido, na medida em que me foi concedida a oportunidade de viver minha própria vida sem uma interferência direta de suas imposições em minhas escolhas. Nos tempos de colégio, esse tipo de intercessão era marcante; algo que me irritava profundamente. Uma vez tendo abandonado esse ambiente, pelas correntes da vida, sua influência tornou-se limitada.

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Uma das consequências que encontrei foi a possibilidade revolucionária de poder dispor das minhas energias para outras coisas, que não o combate a uma força sem sentido reproduzida no seio das famílias e das instituições. Outros combates eram necessários, outras produções pareciam mais urgentes. De certa maneira, ainda hoje, o confronto à religião permanece, de outros modos, quando se trata de matérias políticas, como em questões relacionadas ao aborto, à diversidade sexual e de gênero etc. Mas a religião aparece subordinada a essas outras questões maiores.

Por sua vez, a dimensão divina, aquilo que propriamente chamamos de Deus, talvez nunca se tenha revelado para mim. Não me recordo de haver sentido qualquer centelha, qualquer fagulha de crença ou esperança numa figura como Deus. Esse fator, somado a vários outros, parece ter sido fundamental para minha posição atual. Arrisco-me a afirmar, hoje em dia, que a religião não tem sido para mim uma questão.

Uma vez dissolvidas as rivalidades imaginárias que por tanto tempo me assolaram, acredito ser capaz de me servir dos meus esforços para, paradoxalmente em consonância com certos ideais pregados originalmente por Jesus, problematizar, refletir, produzir em torno da política, do sofrimento psíquico, das lutas das minorias.

Se a religião, desde minha infância, surgiu como uma espécie de peso, de negação em relação à própria vida, pude conquistar, num terceiro tempo, relativa indiferença quanto às questões colocadas pela religiosidade, após tanto batalhar contra ela. Não me pergunto sobre uma “vida após a morte”, sobre a possibilidade de “salvação” do que quer que seja, sobre o castigo divino ou os deveres que teríamos para com um Ente supremo. Isso não faz parte do horizonte de questões que enfrento.

Em suma, se hoje posso me dizer um (in)diferente religioso, isso não é sem considerar que, por muito tempo, a religião fez diferença em minha vida, marcando-a, de certo modo, como um ponto de referência em relação ao qual posso agora me situar no mundo, mesmo que seja por um distanciamento de minhas próprias origens. Ainda assim, não me engano: estando atualmente na plenitude da juventude, adentrando a casa dos vinte anos, não coloco um ponto final para as questões que tanto me preocuparam outrora. Já não me ocupo mais com elas, mas, avisado dos limites do saber, opto por deixar em aberto a pergunta, reservada para outros momentos. E sigo com minhas próprias formas de lutar contra as tantas formas de sofrimento aqui no mundo terreno.

Afinal, manter algumas perguntas sem resposta pode não ser tão assustador assim.