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Juventudes sem Deus ou sem religião? Em busca de compreensão da vivência religiosa de jovens universitários.

Juventudes sem Deus ou sem religião? Em busca de compreensão da vivência religiosa de jovens universitários.

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Como entender, no contexto atual, o fenômeno do crescimento do grupo dos sem-religião, especialmente entre os jovens? Como eles, sem vínculos com instituições religiosas, trabalham a importante questão do sentido da vida, internalizam valores ou lidam com o princípio esperança, nos altos e baixos da vida, em suas buscas de plenitude e felicidade?

Nossa experiência com jovens sem religião acontece sobretudo no espaço universitário. Ela corrobora o vigor de uma intuição intelectual que estamos estudando há algum tempo: a distinção semântica entre espiritualidade, religião e fé em Deus, oferece pistas para a busca da compreensão do crescente grupo dos sem religião no contexto atual1.  Apesar de próximas, as três condições podem ser vivenciadas desagrupadas. Conscientes dos limites deste artigo, sigamos por essa trilha.

Grandes estudiosos do fenômeno religioso2 demonstram sua presença ao longo da história da humanidade. Ainda não tivemos sociedade sem religião, ou seja, sem experiências religiosas, espirituais, crenças, ritos e símbolos (dimensão carismática) que, de alguma forma, tornam-se organizados e regrados para que as vivências aconteçam em grupo e ao longo do tempo (dimensão instituída).

Segundo o teólogo Karl Rahner (1904-1984), o ser humano é um ser radicalmente aberto para a transcendência3, por conseguinte, revela-se movido por desejo, insaciavelmente faminto de sentido, plenitude e felicidade4.  Os prazeres da vida, além de não preenchem o seu vazio infinito, expõem a nudez de sua vulnerabilidade e condição errante. O ser humano é alguém insatisfeito, incuravelmente incompleto, um eterno peregrino, alguém continuamente a caminho, em processo de autoconstrução. Sua singular condição histórica faz dele, além do “homo sapiens sapiens”, um autêntico “homo religiosus”: um buscador de horizontes de sentido, sempre esperançado de encontrar fontes de plenitude, criador de ritos e símbolos que lhe sustente enquanto estiver a caminho da meta. Nesse sentido, compreender o papel da esperança na vida humana se mostra fundamental.

Primeiro, a espiritualidade, porque revela a nossa condição radical de incompletude. A espiritualidade humana, em seus diversos matizes e configurações, tem suas raízes fincadas nessa dimensão estruturante da vida humana situada em contexto histórico determinado. Entendemos por espiritualidade a descoberta e/ou construção, mas também o cuidado/cultivo de fontes de energia profunda que sustentam o equilíbrio interior ou revigoram o ânimo de uma pessoa e alimentam seus horizontes de busca de sentido. O ser humano criou e transmitiu uma gama enorme de espiritualidades, mediações ou caminhos para o viver em busca de lucidez. Sem espiritualidade, o ser humano tende a se perder por falta de ânimo ou coragem de seguir em seu peregrinar.

Segundo, a religião, enquanto mediação privilegiada, mas não exclusiva, para a concretização da dimensão espiritual. Embora sem monopólio, a religião, de modo especial e muito peculiar, tornou-se o locus cultural predominante, onde as buscas estruturantes de sentido da vida são despertadas, alimentadas, trabalhadas, organizadas, educadas, purificadas, moldadas. Cada religião apresenta-se como mediação, caminho seguro para a meta almejada de plenitude e iluminação. Com seus ritos, símbolos e valores, mas também com seus mandamentos, normas e regras, prometem concretizar a conquista da plenitude no meio e no final do longo caminho a ser trilhado.

Há uma suspeita – muito pertinente de ser avaliada em que medida se faz verdadeira – segundo a qual, nas sociedades modernas, o “mercado” vem ocupando significativo espaço trabalhado pelas religiões nas sociedades tradicionais com suas promessas de plenitude a cada rito ou símbolo de consumo. Muitos, de fato, parecem ter se tornado fiéis aos preceitos do mercado e à frequência assídua em seus suntuosos templos de consumo.

Terceiro, a fé em Deus, porque encarna a experiência do Absoluto. Infinitamente maior e anterior a toda e qualquer tradição religiosa, revela-se o “Mistério Absoluto”, realidade transcendente e luminosa, fascinante e tremenda, inabarcável e irredutível ao crivo da razão instrumental, amálgama daquilo que mais nos atrai e amedronta. As religiões nomeiam essa Realidade por muitos nomes e anunciam a importância da entrega do coração dos fiéis a Ela.

A experiência da fé em Deus tende a ser vivida como um fundamento primeiro e, sobremaneira, último para a contingência e finitude do ser. Por Ele somos criados, Nele existimos e para Ele estamos todos destinados. Trata-se, portanto, de experiência que oferece porto seguro, realidade espiritual que restaura a força dos desfalecidos, fonte transcendente e inesgotável de esperança.

Ainda que cada religião apresente-se como uma espécie de caminho seguro para essa realidade absoluta, totalizante e última, trata-se de “algo” infinitamente maior que ela. Do mesmo modo, se a religião oferece espiritualidades concretas para as pessoas, estas extrapolam os estreitos limites da instituição. Ao fecundarem a singularidade de cada subjetividade, a espiritualidade, sempre livre diante das amarras, adquire vida própria. Aproxima-se, inclusive, de outras espiritualidades e descobre ou cria interfaces de mútuo enriquecimento.

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No contexto atual, observamos e nos encontramos com muitos jovens que se apresentam sem qualquer vínculo com instituições religiosas e até, por razões variadas, portadores de visível desafeição religiosa institucionalizada. Simultaneamente, apresentam-se, quase sempre, famintos, sedentos e buscadores de espiritualidades (fontes de vitalidade, energia interior) que lhes provoquem e favoreçam experiências espirituais, capazes de ampliar seus horizontes de sentido e de esperança para o futuro. Entre esses, muitos conservam fortes elementos da cultura religiosa herdada da família ou assimilada pelos vários disseminadores de cultura: os pares, as artes (literatura, cinema etc.), as viagens, as novas tecnologias e, de modo especial, a internet. Outros divorciam a fé em Deus da pertença religiosa: assumem como lema Deus sim, religião não. E ainda que a relação que estabelecem com Deus seja quase sempre construída no caldo cultural oriundo de alguma tradição religiosa presente em sua cultura familiar, não reconhecem qualquer vinculação religiosa.

Para terminar, sem qualquer pretensão de completude, preferimos caracterizar os jovens aqui retratados apenas como sem religião, mas não sem espiritualidade. Eles cultivam espiritualidades desinstitucionalizadas, laicas ou não religiosas. E, embora reconheça a presença de jovens que se afirmam ateus e/ou agnósticos, a grande maioria dos sem-religião cultiva sim a afetiva e efetiva fé em Deus.


Referências

1Fomos despertados para essa intuição na leitura do cap. 3 da obra da seguinte obra: LIBANIO, João Batista. A religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002.
2Merecem ser mencionados, dentre outros: Mircea Eliade, Rudolf Otto, Hans Küng, Aldo Natale Terrin, Faustino Teixeira.
3Cf. RAHNER, Karl. Curso Fundamental da Fé. São Paulo: Paulus, 1989.
4Cf. ALVES, Rubem, O que é religião? São Paulo: Loyola, 2011; BOFF, Leonardo. Tempo de transcendência. O ser humano como projeto infinito. Petrópolis: Vozes, 2009.